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Vivência de vida e de morte

(Crônica dedicada a José Ribeiro de Oliveira)

Durante a madrugada, ‘estive’ com meu pai, como sempre acontece desde que ele se foi há dezesseis anos. Pouco do que sonhei permanece guardado na memória, e o que sobra é fio de meada que se alonga na dissertação do conteúdo de alguma valia que vai se autodefinindo quando medito a respeito do que está para ser construído a partir dos fragmentos que o sonho emite. Ao fechar os olhos e seguir viagem pelo cosmo com destino à minha Pandora, acabo ficando de frente com os fatos e com as pessoas que, de alguma forma, estiveram comigo enquanto dormia e sonhava.

Ao alcançar o que busco, a primeira convicção é a de que, por mais que milhões de anos luz eu me afaste daqui por obra e graça do que Deus determinar, a trajetória bíblica será cumprida, inclusive os personagens de agora ou do passado com suas vivências de vida e de morte. Juro que, no meu retorno, gostaria de ter Lagarto sob meus pés porque a cidade é um referencial de bom tamanho. Se eu mereço alguma coisa, que seja sempre Lagarto com sua história, meus pais, irmãos, amigos, mulher e seis filhas.

Numa dessas idas ao infinito, através da meditação, na tentativa de me conhecer melhor – ou, quem sabe, purificar meus pecados –, recebo das mãos de um alguém – sem corpo plenamente visível, mas com alma delineada pelos meus olhos embaçados – um envelope branco, maior do que os ditos convencionais.

Endereçamento postal escrito à mão com a velha caneta Parker que eu tanto conhecia de época remota. Inesquecíveis anos de criança a perambular nas dependências dos Correios da antiga Rua da Glória, enquanto ele, exímio telegrafista recebia mensagens em forma de telegramas em código Morse, transformando sinais em palavras com a escrita convencional.

No envelope, a letra inconfundível do remetente sem identificação me causou um impacto gostoso porque satisfazia as minhas ambições de filho que, até hoje, sente a necessidade do afago paterno, do olhar bondoso e compreensivo e da magnitude expressiva que formatava a personalidade do meu pai, ‘Seu Nelson, Nelson do Correio, Nelson Ferreira do Nascimento’. Ele, meu exemplo de vida, surgiu rápido diante de meus olhos como saído do encantamento que dava vida a mim e a ele, pelo menos por instantes – mágicos e excepcionalmente reconfortantes. É assim, vez por outra, que surge vivo diante de meus olhos fechados.

Não se trata de nostalgia, embora essas coisas que o sonho e a meditação realçam me fazem sentir saudade, o que é muito natural porque em cada um de nós mora um sentimento que resulta em coisas que o mecanismo humano não consegue evitar, a exemplo da morte.

A notícia da morte de pessoas queridas costuma me deixar extremamente triste e abatido. Há duas semanas, durante o transcorrer do meu trabalho em Aracaju, um dileto sobrinho me perguntou se eu conhecia José Ribeiro Oliveira. O ‘conhecia’ da pergunta chegou aos meus ouvidos com o peso de uma nota de falecimento. Senti uma espécie de agonia ao perceber de imediato que a minha geração está indo embora, deixando saudades, lembranças, famílias, exemplos…

Recentemente, após ler uma de minhas crônicas postadas no lagartonet.com, Zé Ribeiro (assim eu o chamava), deixou uma curta mensagem: “Oi, Mago, esse compadre seu também não é conhecido por Rosalvo Sandes, ex-vereador?”

Recordo que, no passado, eu e ele, alunos do então Ginásio Laudelino Freire, a cada horário vago, sentávamos nas carteiras escolares que, por instantes, serviam de instrumento de percussão para as nossas habilidosas mãos de bateristas virtuais. Ao som de Blues Wark, cantarolada por mim, fazíamos um batuque gostoso no bom improviso para uma plateia de entusiasmados colegas.

No início do ano passado, encontramo-nos no centro da cidade – esquina da Lupicínio Barros com a Rua da Glória – oportunidade em que ele, criativo como sempre, me fez um inusitado convite: queria colocar nas ruas durante o desfile cívico do 7 de setembro a banda do Laudelino Freire, a dos velhos tempos – na época comandada por Aloísio Conceição – a mesma que encantou o público em nosso passado de jovens idealistas e que foi responsável pelo surgimento do Tremendão da Avenida Francisco Garcez, conforme eu denominei no início da década de setenta, em artigo publicado no jornal A Voz de Lagarto.

Diante do convite feito com enorme entusiasmo, fiquei impossibilitado de dizer um não, mesmo porque eu tinha certeza que o amigo não conseguiria reunir número suficiente para tirar do túnel do tempo a velha guarda do Laudelino Freire. Entre eles, Emanuel de Zé Francisco, Eraldo de Jaconias, Aloísio de Seu Jorge, Joaquim de João de Amélia, Toinho de Nozinho, Zé de Santo, Vaubério de Tonho de Alexandre, Chiquitão e Euler de Nelson do Correio, entre tantos outros que, por alguns anos, desfilaram garbosos pelas ruas e avenidas da cidade.

Na minha crônica de estreia neste site – em 22 de julho de 2008, à disposição dos internautas –, Zé Ribeiro é personagem que vive o infortúnio da paixão pela terra natal, dividindo comigo momentos de profunda tristeza numa época em que os estudos nos forçaram a morar na capital. Naqueles idos, duas músicas de Agnaldo Timóteo se transformaram no hino do nosso sofrimento e amor por Lagarto. A primeira delas, Os Verdes Campos de Minha Terra, deu nome à crônica; a outra, Meu Grito, tinha enorme apelo emocional (Se eu demoro mais aqui eu vou morrer, isso é bom, mas eu não vivo sem você). Ao som de ambas e aos pés da estátua do Monsenhor Olímpio Campos, bem em frente da Catedral Metropolitana, derramamos muitas lágrimas.

Agora que o inesquecível companheiro se foi, só me resta guardar com profundo respeito e em lugar mais confortável do meu coração a memória que ele fez por merecer.

Ao velho amigo, fica a certeza de que nos encontraremos em meus sonhos e minhas meditações. Entre uma prosa e outra, reeditaremos uma nova versão de Blues Wark e, até lá, é possível que a velha guarda do Laudelino aceite dar uma exibição única no circuito das bandas no próximo 7 de setembro. Por último, a lembrança de que saudade de Lagarto para você agora é coisa do passado, pois desse solo fértil e tão querido, amigo, ninguém jamais vai tirá-lo.

Humildemente, conte com minhas preces.

1 comentário

Vauberio Oliveira Cezar

Caro Amigo Euler, a sua crônica a respeito do nosso inesquecível Zé Ribeiro, o Xará, ficou excelente, magistral, com uma veracidade dos fatos ocorridos à época do nosso convívio escolar. Você, Euler, é um ícone cultural lagartense que muito nos engrandece. Abraços do amigo

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