Eslovaco
Envolvidos numa frieza difícil de ser suportada, eles são quase como estranhos. Não se cumprimentam com abraços e beijos, não conversam longamente. É uma distância doída, carregada de desejos contrários de estar perto e de sussurros inaudíveis de amor. Compreendem a admiração que sentem um pelo outro, mas nada é dito. Há um fosso intransponível que os impedem de serem íntimos. O simples toque é uma cerimônia que não ousam iniciar.
Enraizaram-se em uma cidade parada e adornada de paralelepípedos brilhantes, que nada dizem. Tudo é petrificado e frio, do chão às pessoas. Há separação por todo lado, as pedras lisas e retangulares não se encontram e permanecem assim, eternamente, uma ao lado da outra, para sempre caladas, cada uma no seu ofício de ser pisada, e nada mais. Mas nem sempre foi assim.
Eram cúmplices nas qualidades e nos defeitos. Dormiam um perto do outro, ele segurando a mão dela, contando-lhe mil histórias antes de dormir, fazendo das noites uma biblioteca de contos mágicos. Isso criava em Isabela uma confiança de que ela poderia ser quem ela quisesse, de que ela poderia ser ela mesma, porque com o corpo ele dizia, “estou aqui, seja você”. Essa sensação é sem par, viver sem subterfúgios, apresentando-se, corpo e alma, como se é de fato e ser apreciada por isso.
Ela admirava-o em tudo, principalmente quanto ao caráter justo e à inteligência. Ele era o dicionário dela. Tudo ele sabia. Azáfama. Babaquara. Coadunar. Diacrônico. Ébano. Factual. Gadanho. Heart. Iatagã. Je t’aime. Karo. Lograr. Macaibeira. Nictofobia. Oiteiro. Pômulo. Quacre. Resfolegar. Substrução. Taquara. Uacari. Vergalhão. Western. Xepa. Yang. Zíngaro. As palavras todas, e depois, a ausência das palavras foi o lema dessa relação.
Esperançosa a flama cresceu, construída através de cuidados diários e de identificação mútua. Amavam-se tanto porque se pareciam. Por esse mesmo motivo, por se igualarem na frieza e na secura, é que vão enclaustrar os sentimentos bons e esquecer a amplitude dos que viveram. Tem coisas que, por conta de toda a substrução, não se pode esquecer, é atrocidade demais com o passado, deixá-lo virar apenas azuladas pedras mudas. Estas continuam a ser o alicerce sobre o qual as casas atuais estão assentadas – morada de Isabela.
Eclipsou-se a veneração e o afeto tornou-se petrificado. Isso dá uma estreiteza no coração e a vontade de saber em qual paralelepípedo a relação se perdeu. Mas ela continua lá, escondida por entre as pedras, sufocada por anos de asfaltamento. Sejam destruídos os dias que selaram essa separação, sejam esquecidas todas as memórias gementes.
Ele não soube continuar cativando-a. Deixou-a pra lá, deslumbrado com outros interesses. Disponibilizar-se ao poder alvejante do amor, deixando-o transpor cada prerrogativa a ponto de suplantar os desejos egoístas, nada disso é facilitado pela nossa natureza individualista. Continuar amando, apesar da desilusão, deixar-se amar na intensidade e no jeito que o outro sabe amar, porque há o perigo de se desintegrar, esse patamar não é para todos. O amor, definitivamente, não é encontradiço.
Ébrio, ele não atinou para a sua importância na construção da vida de Isabela. Ela precisava dele para continuar forte, apesar de que continuou forte do mesmo jeito. Queria crescer perto dele, cresceu assim mesmo. A vida aconteceu de qualquer maneira. As estações passaram, os ciclos findaram e reiniciaram, a maturidade pediu licença. Hoje ambos crêem que todo o ódio que os separou foi uma fantasia, poderiam ter renunciado a ela, assim ter-se-iam poupado de tão longa azáfama.
E os erros dela? Ela nunca pensou a partir dessa perspectiva porque sempre ocupou o lugar da vítima – a abandonada, a preterida. Hoje, a coragem está chegando e Isabela vai até o passado com uma lamparina, a fim de sondar um mundo desvanecido. Vai com pouca luz porque a coragem ainda é pouca. O medo da emoção junto ao receio de volver o que está enterrado funciona como um sopro na luz que quer clarear a escuridão.
Encoquinhada e sentida pelo desligamento dele, foi-se fechando, endurecendo seus sentimentos, numa defesa gigantesca transformada em rasgos agressivos. Sabe-se que por trás da agressão, há uma frustração. No caso dela, o horror de ter sido aniquilada, deposta. Então, para não se expor mais, enclavinhou o coração que ansiava apenas por sentir-se amada, esse era o murmúrio mudo do seu encasulamento. Em estado ebuliente por tantas perdas vividas, deixou de ser ela mesma e criou uma persona de mulher autossuficiente, e assim foi secando, encruando, petrificando, como o paralelepípedo, que pisam, mas porque é duro, não sente dor.
Essa foi a prova que Isabela tirou e continua tirando nota baixa: subtrair, dividir, perder, deixar de ser. Essas operações são mesmo desafiadoras. Isabela, ao desnudar-se, percebe que não estava preparada para sair do pódio e ocupar o banco das pessoas comuns. Confessar esse desejo de ser sempre a primeira, dói em sua vaidade. Passar despercebida? Como, se sempre foi a principal? A apreensão com a chegada da velhice abriga em si todos esses medos matemáticos de subtração e divisão. Ao perceber que a descida do oiteiro é chegada, ela não pode deixar de antever a perda da beleza, do vigor sexual, da agilidade, da saúde. Tudo isso lhe é assolador. É aí que entra também o peso da própria morte – deixar de ser, e da morte dos amados – deixar de ter.
Ele enchiqueirou-se todo no envolvimento com o que há de pior na raça feminina. Os pômulos róseos denunciavam sua lascívia translúcida, que era sentida por Isabela como um deboche e o odiava por isso, mesmo sabendo que esse ciúme não lhe pertencia e sim a outra incauta. Os sentimentos amorosos estão mesmo longe da razão. Foram necessários anos de reflexão para Bela compreender que ele não era dela, que ele não a havia traído e que é possível preservar o afeto, mesmo mudo, apesar de tudo.
Esmerilhada pela vida e pelas mortes, Isabela está aprendendo a perder toda sorte de coisas, sentimentos, pessoas. Hora de suavizar as contas, deixa-se cortar e reparar no que se ganha, suportando com nobreza os golpes, mesmo nas esverdeadas pedras. É com naturalidade que percebe que um dia será encortinada. Isso já não traz dor, mas alegria de ter vivido. E, por gostar de lembrar daquilo que viveu, continua levando-o consigo no encólpio que traz no pescoço. Há muito não o tem como inimigo, pelo contrário, é lembrança cara. Surpreende-se pensando: Cadê eu? Eu sou ele.
Ebóreo, devido ao tempo de afastamento e silêncio, esse amor não tem mais jeito de tornar-se afetuoso, virou um vergalhão. Não há como reedificar os anos desabados, nem como desencoleirar a gratidão. É continuar amando dessa maneira ou nada. Para resolver esse caso: palavras. Todas as que ficaram pelo caminho, engolidas ou pisadas, que venham à tona, nem que sejam escritas, para deixar aos que virão a prova de que essa relação de amor existiu, e, porque escrita, não se extinguirá.
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