Português na escola – Qual é o caminho?
Extraído do Jornal SergipeHoje – Ecos & Letras – Cultura
Ao escrever o livro “Contradições no ensino de Português – A língua que se fala x A língua que se ensina”, a autora Rosa Virgínia Matos e Silva objetiva desenvolver seu ponto de vista sobre a relação entre a intenção explícita da escola quanto ao ensino do português e a intenção implícita da mesma, em ser uma instituição reprodutora da ordem social vigente. Sua reflexão inicial sobre o tema, vale-se dos verbos incisivos de Bourdieu e Passeron – conservar, inculcar, consagrar – que caracterizam a função da escola. Esse padrão idealizado e exigido, segundo a autora, se não é uma “violência simbólica” para todos que a ela chegam, é violência para a maioria, e assim tem sido ao longo da história. Lamenta ainda, quando pensa na massa de crianças brasileiras, que vindas de camadas sócio-econômicas mais baixas de nossa sociedade, fracassam na sala de aula porque não manejam “a língua da escola”. Essa, que no geral, não está preocupada em resolver a questão, por isso elas desistem.
Rosa Virgínia Mattos e Silva nos situa quanto ao período em que a norma Normativo-Prescritiva, aquela codificada nas gramáticas pedagógicas, que se repete sem o mínimo de alteração, começou a sofrer transformações. Foi a partir do renascimento do século XVI, que as línguas vulgares (gramática descritiva e gramática pedagógica) passaram a ser trabalhadas como objeto de ensino; no período uma ofensa à prática intocável do latim e do grego, reinante durante a Idade Média. Desde então, surge uma heterogeneidade dialetal, e em seu bojo, a discussão sobre o que deve prevalecer no sistema educacional. Se o da linguagem culta, falada pela classe socialmente privilegiada e aqui defendida pelos estruturalistas, lingüistas do Círculo de Praga, seguidores de Saussure; ou se uma regulamentação lingüística, proporcionando aos usuários de outros dialetos na mesma língua, o respeito por essa variação na prática de ensino. Essa corrente é defendida pelos sociolingüístas, principalmente a partir da década de 60, numa clara tentativa de subestimar as teorias estruturalistas. Dentre os seus defensores, pode-se citar Coseriu, que diz que a norma (estruturalista) se impõe ao indivíduo limitando suas possibilidades expressivas e, conseqüentemente, de ascensão social. A sociolingüística e a heterolingüística, têm mostrado, assim, a importância da manutenção da “distinção”.
Na tentativa de análise das escolas e normas, no caso brasileiro, a autora inicia epigrafando Wanderley Geraldi, quando afirma que pela “democratização do ensino”, fato extremamente recente no Brasil, tiveram acesso à escola, largas camadas da população marginalizada. Ocorre que aquela não estava preparada para “tamanha mudança”, visto que era o caráter elitista de ensino no Brasil, uma constante, desde a chegada do Marquês de Pombal, concomitantemente a essa tentativa de ensino para o povo, fez surgir muitas e variadas falas dentro do próprio idioma, aflorando-se, na prática, o aspecto multilíngüe.
Em face dessa discrepância dialetal, Abgar Renault, ministro da Educação, cria em 1986, uma comissão para o aperfeiçoamento do ensino-aprendizagem da língua materna. Iniciativa duramente criticada pela autora, e que propunha esta, uma pedagogia voltada para o todo da língua e não para algumas de suas formas. Nesse ínterim, surge ainda o lingüista Ataliba de Castilho que, de sua análise, depreende a dominância de uma ou de outra orientação normativa veiculada, ora para a sociedade, ora para o interior da língua. Em congruência com a opinião da autora, Ataliba de Castilho defende, adicionalmente, que a tarefa da atual geração está em resolver este impasse da cultura nacional, desvendando a nossa realidade lingüística e ajustando a norma pedagógica no que for necessário. Nessa direção é que foi criado o projeto NURC, importado pelo professor Nelson Rossi, da Universidade Federal da Bahia, em 1969, e atualmente desenvolvido em São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife e Porto Alegre. Ainda na região sul, vem se desenvolvendo o projeto Varsul, que envolve dialetologia regional, variação social e multilingüísmo. São alguns dos projetos em que se percebe a sociolingüística em ação, tão defendida pela autora como meio de solucionar o problema da heterodiscriminação línguo-cultural.
Neste livro, baseando-se em trabalhos desenvolvidos por pesquisadores das variações lingüísticas em nosso português brasileiro, a exemplo de Mattoso Câmara Júnior, Miriam Lemle e Maria da Conceição Paiva, a autora calca-se na não diferente conclusão com relação à variação lingüística, como influenciadora das práticas ortográficas. Assim, ao confrontar alunos de 1º grau, lecionados em escolas municipais e particulares das zonas norte e sul do Rio de Janeiro, respectivamente, como o fez Maria da Conceição Paiva, nota-se que no 1º grupo há uma maior incidência de erros na ortografia do que no segundo, o que também é válido e já como conseqüência de erros na fonologia. Uma explícita forma de justificar essas variações, não só no caso particular do Rio de Janeiro, mas em âmbito nacional, é a heterogeneidade cultural que impera, segundo conclusões da autora, e ainda de que tanto os fatos que marcam classes sociais, quanto os gerais que causam problemas na aquisição da ortografia pelos alunos, têm que ser conscientizados pelos professores, no seu processo de formação profissional.
Porém, ao viajar pelo texto, o leitor descobre que são nas variações sintáticas por que passa o português nas diferentes regiões brasileiras, e através dos seus reflexos na escrita, que mais se configura o aspecto da heterogeneidade dessa língua. Assim, entre os pronomes sujeitos e flexão verbal, percebe-se a dificuldade de impor as segundas pessoas do discurso (tu e vós) na linguagem oral da maioria dos brasileiros, ou ainda, na concordância entre verbo e sujeito, bem como, no sintagma nominal que em diversas regiões a flexão de número tem ocorrência zero. Quanto ao objeto pronominal, a categoria vazia (aquela em que se omite o artigo objeto) e o pronome lexical (onde se usa o pronome reto como complemento) estão cada vez mais em evidência, e são “importantes estratégias de esquiva” por um lado, em relação ao uso do clítico (artigo como objeto) em processo de desaparecimento, como mostram Fernando Tarallo e Eugênia Duarte em suas pesquisas. Acerca dessas constatações, conclui a autora, que aos professores de português, caberia ter conhecimento da complexidade dessa variação para melhor conduzir o seu ensino no sentido de não assoberbá-lo com as regras de uso dos clíticos, mas encaminhá-lo no sentido das “estratégias de esquiva”, em relação ao pronome lexical marcado como socialmente estigmatizado em estruturas sintáticas simples, as mais transparentes aos interlocutores. Ao descrever esses fatos sintáticos em variação, além do problema da aplicação dos pronomes relativos, bem como, da perda dos clíticos reflexivos, recíprocos e indeterminados, a autora visa mostrar como se coloca essa questão no processo de ensino da língua portuguesa, que prevê a aquisição de estruturas, no geral, não mais usuais nas falas correntes da grande maioria que chega à escola, nem tão pouco, nas falas da maior parte dos professores, hoje necessárias para atender à demanda escolar.
Diante dessa realidade, a autora encaminha a conclusão, como já havia dito Fernando Tarallo, em Fotografias Sociolingüísticas, que essa “língua brasileira” pode já ser outra língua, no sentido de outra gramática, e de que as vozes brasileiras não podem deixar de ser ouvidas, se o país quer, de fato, uma escola para o povo brasileiro em geral, como diz que quer desde a década de 30. Evidencia-se, dessa forma, a posição da autora a favor de uma reformulação nas próprias regras ortográficas, a fim de dar vez à grande massa que dela faz uso. Essa posição é ainda reforçada pela própria variação que atualmente vem se evidenciando dentro da referida “linguagem culta”, própria das pessoas de nível cultural elevado. Como exemplo disso, a autora recorre a alguns dados colhidos pelo projeto NURC, onde se percebe o uso do artigo definido diante de nome próprio, ou mesmo, o uso generalizado da próclise em quase todas as construções oracionais, desprezando também, as regras de ênclise ou mesóclise pela camada culturada, isto é, as prescrições gramaticais não estão atingindo nem aqueles de nível de escolaridade mais alta.
Certa de ter feito uma análise objetiva da situação da língua portuguesa no Brasil, Rosa Virgínia Matos conclui seu livro deixando a expectativa de que, no futuro, os alunos não tenham que aprender duas línguas: uma para escrita e outra para as práticas de comunicação oral.
O texto guarda muitas riquezas, a exemplo da sua linguagem objetiva e muito circular, que facilmente nos leva a compreender o que está escrito.
Leitura obrigatória, em especial para os que valorizam o ensino da Língua Portuguesa e buscam ampliar seus horizontes em sala de aula, respeitando o direito de ir e vir de cada um.
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