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A taxa de iluminação pública

A dívida acumulada pela falta de pagamento das mensalidades da energia elétrica fornecida para a iluminação pública, herança de sucessivas administrações, fez o poder público municipal ser pressionado a solucioná-la. O governo estadual, interessado direto na privatização da estatal distribuidora, precisava da quitação do astronômico débito para proporcionar o saneamento financeiro da empresa, cumprindo assim a principal cláusula para dar prosseguimento ao processo que marcaria a data do leilão. O chefe do executivo local, temeroso de que uma ação judicial viesse a bloquear as contas do erário, com a consequente diminuição dos recursos que seriam importantes para sustentar as políticas assistencialistas e vitais para o seu projeto de promoção pessoal, necessitava encontrar uma saída urgente.

Confiante na curta memória do povo, espertamente, enviou à Câmara Municipal um projeto de lei que instituía um imposto permanente denominado de “taxa de iluminação pública”, destinado a cobrir a dívida. O cálculo seria feito mediante a aplicação de um percentual diferenciado que incidiria sobre o valor cobrado pelo consumo residencial, comercial e industrial. Mataria dois coelhos com uma só paulada: tirava da prefeitura o encargo da pagar pela iluminação da cidade e a livraria da dívida. Como sempre, o pesado fardo cairia sobre os ombros da comunidade tão logo o tributo fosse aprovado e sancionado.

A aprovação – tanto com votos da situação como com alguns da oposição -, gerou muita insatisfação e despertou rumores maldosos a respeito dos motivos que levaram os nobres parlamentares a apoiar tal excrescência. Os menos levianos davam conta do condicionamento do voto favorável ao recebimento de um “cachê” de quinze mil reais (fato nunca comprovado e inimaginável de ser compatível com o caráter e honradez de tão venerados edis). Mas, àquela altura, independente de controvérsias e boatos, com fato consumado, aos munícipes restava o “consolo” de pagar por algo jamais devido.

Por muito tempo, naturalmente, os sinais de descontentamento recrudesciam sempre nos dias de recebimento ou de pagamento da conta de energia. Isso, invariavelmente, acontecia comigo. Cada vez que recebia o boleto, fervia de raiva. Ficava a pensar num modo de manifestar o meu repúdio, contudo, sem encontrá-lo. Uma ação civil pública, talvez fosse o caminho a ser seguido, mas não acreditava que viesse a prosperar. Decidi, então, fazer do voto o meu instrumento de protesto. Pacientemente, aguardei a chegada da eleição seguinte para dar a resposta. Intimamente, nutria a certeza de que a maioria faria o mesmo.

A primeira oportunidade de fazer valer a minha indignação aconteceu num dia, duas semanas antes do pleito, quando fui abordado na saída do trabalho por um radiante vereador e candidato à re-eleição, coincidentemente, após ter recebido a fatura para pagamento da energia. Ladeado por alguns dos seus áulicos, sem cerimônia, pôs um “santinho” no bolso da minha camisa e me recomendou:

– Não se esqueça de mim no dia da eleição, doutor!

Já bastante aborrecido pelo recebimento do boleto (acrescido da taxa, óbvio), não tive alternativa senão retrucar:

– Claro que não vou lhe esquecer; mesmo porque, lembro-me do senhor todos os meses.

– Por que o senhor se lembra de mim?

– Por causa da taxa de iluminação pública. Ao aprovar esse tributo o senhor me obrigou a pagar uma dívida que nunca fiz, portanto, fique bem tranquilo. No dia da votação terei o máximo prazer em agradecê-lo pelo belo e permanente presente recebido.

Tomado de surpresa, o homem amarelou. Balbuciou algumas justificativas, mas foi abafado pelas risadas dos acompanhantes. Educadamente, pedi licença e segui meu caminho.

O resultado final do pleito revelou o oposto de tudo que aparentava acontecer. As manifestações de insatisfação não passaram de meras bravatas e mostraram-se frágeis perante as práticas clientelistas e assistencialistas (corriqueiras no Nordeste e infalíveis transformadoras de nulidades em sumidades da administração pública). A taxa, além de esquecida, foi perdoada. O prefeito foi re-eleito e a maioria dos vereadores envolvidos na aprovação, também. O único derrotado foi o candidato que me abordou. Pelo menos, em parte, o meu protesto valeu. Agora, toda vez que recebo o boleto de pagamento, a raiva momentânea é compensada pela lembrança de espanto que lhe causei. Mais nunca ele me pede um voto.

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