Acerto de contas
Os estudantes do Laudelino Freire desfrutavam de muito prestígio. Eram considerados os melhores alunos da cidade, não somente em função da exigência e da qualidade do curso ginasial, como também pela capacidade de superar a acirrada disputa pelas diminutas vagas oferecidas no exame de admissão. Àquela época, a concorrência era tão grande que se assemelhava a um concurso vestibular, justificando a razão do esmero com que as professoras do curso primário preparavam os seus pupilos, especialmente D. Hemetéria Campos e D. Erundina Mota.
Como bem relatou Joaquim Prata, na sua crônica “Lembranças”, paralelamente ao rigor do ensino, a disciplina também não ficava atrás. Era de natureza quase espartana. Os casos de insubordinação eram punidos severamente e, às vezes, até com injustiça. Um incidente ocorrido com uma turma do primeiro ano, numa aula inaugural de Português, dá a idéia de como era a coisa: por não poder identificar quem arremessara um sabugo em direção ao quadro-negro, a Professora Maria Helena Dantas penalizou toda a classe com nota zero, transformando o instrumento de avaliação do aprendizado num artifício de vingança.
Apesar da austeridade empreendida, eventualmente as regras dos bons costumes eram quebradas por estripulias. Uma dessas, que teve como protagonista principal, Aderbal Prata, foi o furto das merendas – naquela época, os estudantes cultivavam o hábito de levar de casa os seus lanches, pois o Ginásio não dispunha nem de autonomia nem de espaço para instalar uma cantina porque não tinha prédio próprio e funcionava numa ala do Grupo Escolar Sílvio Romero, cedida pelo Governo do Estado.
Aderbal era um dos mais ferrenhos críticos do sumiço das merendas e vivia sempre a cobrar da direção do Ginásio medidas efetivas para acabar com aludida distorção (talvez, por isso, tenha se tornado a vítima preferida dos gatunos). Porém, quanto mais ele reclamava, mais a sua merenda sumia. Nem mesmo a ameaça de resolver tudo sozinho e prometer um acerto de contas tão-logo descobrisse os espertalhões, surtia efeito. Acabou transformado numa espécie de “bobo da corte” e as bravatas de valentia virando chacota.
A solução do intrincado caso começou numa tarde, em que ele entrou no Ginásio exibindo uma pequena bandeja com algumas cabeças-de-frade amanteigadas (compradas na famosa Padaria Santo Antonio), como se estivesse disposto a provocar os larápios. Após o acintoso desfile, sentou-se em seu lugar e guardou as iguarias no compartimento da carteira. Contrariando o comportamento habitual, ali permaneceu e ficou a vigiar a merenda. De repente, quase no horário do lanche, em razão de uma emergência, se viu obrigado a sair. Não demorou muito, porém, o tempo mais que suficiente para acontecer o furto. Ao voltar, os quitutes haviam sumidos e em seu lugar só restavam a bandeja e as migalhas.
O que ninguém imaginava era que a exibição da bandeja com as cabeças-de-frade fazia parte de uma estratégia, malevolamente concebida para apanhar os gatunos. A manteiga usada nos pães havia sido “temperada” com um remédio chamado de vomitório, especialmente adquirido na Farmácia Santa Terezinha. Enquanto os colegas o gozavam por mais uma decepção, Aderbal, fingindo irritação, esperava o exato momento de flagrar os comilões.
Não levou muito tempo para que a rotina da aula de História da América fosse quebrada pelos gemidos e lamúrias vindas do lado de fora. Pelas janelas, o Professor Adelmo e toda a classe vislumbraram as pobres vítimas vagando pelo campo de voleibol. O efeito do vomitório se revelava devastador: os coitados, acometidos de soluços entrecortados, salivando como cães raivosos, vomitavam sem parar; tinham os olhos avermelhados, lacrimejantes e esbugalhados; apresentavam palidez cadavérica, além de pernas e braços trêmulos; pareciam uns mortos-vivos.
O alvoroço tomou conta do Ginásio. As aulas foram imediatamente suspensas. A direção e os funcionários da casa saíram em socorro dos infelizes. Enquanto isso, Aderbal não cabia em si de tanta felicidade. Com uma só paulada resolvera a dupla questão. Não só descobrira os “malfeitores” como cumprira o prometido acerto de contas. A alegria era tanta que não se importava com as consequências da empreitada, embora estivesse ciente do inapelável castigo.
No dia seguinte, os envolvidos foram intimados pelo diretor, Dr. João, que, surpreendentemente, absolveu a todos. Porém, não deixou de proferir uma grande reprimenda, seguida de uma aula de boa conduta. Durante o ato, ficou notório o esforço empreendido para conter o riso, sempre que pronunciava a palavra vomitório.
Daquele dia em diante, no Ginásio, nunca mais se ouviu falar em furto de merenda.
Nota: os flagrados no caso “vomitório” não foram mencionados, propositalmente. Como não consigo me lembrar de todos, citá-los parcialmente, com certeza, geraria uma descortesia. Os esquecidos jamais me perdoariam.
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