O cavalo de vaquejada
Uma pesquisa encomendada para avaliar o conceito das diversas categorias profissionais e representativas da sociedade apontou a corporação dos bombeiros como a de maior prestígio entre os brasileiros. Enquanto os prodigiosos trabalhadores do fogo galgavam o merecido reconhecimento, a classe política amargava a última colocação. A razão de tamanha repulsa merece uma reflexão, pois, se partirmos da premissa de que no regime democrático cabe ao eleitor a prerrogativa de eleger aquele que merece a sua confiança, conclui-se que essa mesma credencial deveria servir para banir da vida pública os maus representantes. Se os ruins permanecem, a culpa é do povo.
Mas, admitindo a hipótese de que a pesquisa tenha levado em conta somente os maus políticos, há de admitir que haja tipos piores: os bajuladores. O “puxa-saco” é o tipo de vigarista portador de patologia moral incurável, que não se importa com nada e só enxerga levar vantagem. Do mesmo modo com que se aproxima da “vítima”, também se afasta, quando não tem mais o que usufruir.
O caráter do bajulador é igual ao daquele sujeito que chegou numa cidade do interior do Nordeste, mirando na figura de um velho líder político local, um rico fazendeiro, o filão de ouro a ser explorado. Esperto e envolvente, apostou na fragilidade natural da senilidade e na boa lábia – entre outras artimanhas – para tornar-se um conviva influente. Em pouco tempo, não somente conquistou a assistência veterinária (embora os seus conhecimentos científicos estivessem mais afeitos para avaliar a qualidade das mais diversas marcas de bebidas alcoólicas do que da profissão), como também a confiança de gerenciar muitos dos negócios das fazendas do septuagenário, auferindo ganhos pessoais sem despertar a menor suspeita.
O rápido progresso financeiro alcançado, todavia, ainda era pouco para o tamanho da ambição. Ele queria muito mais. Pretendia ingressar na política, ocupar altos cargos, obter prestígio, poder e enriquecer de vez. Pacientemente, esperou o momento ideal para levar adiante sua pretensão: o pleito eleitoral que se aproximava, no qual o velho líder político tentaria ser eleito mais uma vez prefeito da cidade.
Fazia muitos anos que a oligarquia dos fazendeiros detinha o poder. As sucessivas eleições serviam apenas para cumprir formalidades e legitimar o rodízio entre o grupo dominante. O pleito que se aproximava não seria diferente, apesar de contar, desta vez, com um candidato opositor muito esperto. A crença geral entre os velhos caciques, contudo, era de que discurso de renovação e modernidade não seria páreo para enfrentar a força do dinheiro e da tradição.
Apesar da iminência da vitória, em política, o velho candidato era mais desconfiado do que nos próprios negócios. Sem cerimônia, apelava para tudo que pudesse lhe assegurar uma vitória tranqüila, inclusive, para as ciências ocultas, magia negra e outras coisas do gênero. Disso se aproveitou o espertalhão, que, dando uma de conselheiro, levou-o a um ritual macabro comandado por um afamado curandeiro, prometendo-lhe fechar o corpo contra qualquer adversidade. Ao final da pajelança, foi sugerida uma exótica beberagem para ser usada somente em situação emergencial: um copo de sangue de um cavalo veloz para fazê-lo disparar na apuração dos votos.
Apesar de estar de corpo e alma na campanha do oligarca, o malandro parecia possuir o faro de um cão sabujo. Perspicaz, percebeu que o discurso opositor começava a ganhar corpo. Como bom calculista, não perdeu tempo e tratou logo de estabelecer uma ponte de contato com o outro lado, insinuando estar em consonância com as idéias da modernidade. Por razões profissionais, desculpava-se, não poderia se engajar como desejava no projeto político do jovem. Entretanto, discretamente, prometia ajudá-lo. Em suma, acendia uma vela para Deus e outra para o Diabo. O mais importante era estar de bem com quem assumisse o poder.
A suspeita do golpista começou a se confirmar logo na primeira urna. A lenta contagem manual mostrava a tendência de derrota dos oligarcas. Enquanto o desastre eleitoral se desenhava na cidade, na sede da fazenda os oligarcas comemoravam antecipadamente. As péssimas notícias, no entanto, não tardaram a chegar. O velho líder, estupefato, não hesitou em apelar para a receita da beberagem.
O veterinário, que já havia consumido uma garrafa e meia de uísque, foi intimado às pressas para ir ao estábulo a fim de colher o sangue do melhor cavalo de vaquejada da região. A bebedeira não o impediu de fazer a coleta do sangue com a rapidez exigida, porém não lhe permitiu atentar que havia feito o procedimento num outro animal. O cavalo veloz fora confundido com um burro velho e lento, que também se encontrava no mesmo recinto.
O resultado do engano aumentou o desastre. O sangue do burro não surtia efeito, conforme atestavam as informações que não paravam de chegar. O quadro eleitoral era cada vez pior, praticamente irreversível. Não se sabe como, mas os rumores da troca do sangue começaram a se espalhar e os mais exaltados saíram à caça do responsável exigindo explicações.
O torpor do álcool, porém, não tirou o raciocínio do espertalhão. Ao tomar conhecimento da descoberta da atrapalhada, tratou de sumir antes da tempestade desabar Sorrateiramente, abandonou o casarão situacionista, indo buscar guarida no comitê do opositor, dando a entender que a desastrada desatenção teria sido proposital e fazia parte da sua parcela de ajuda.
A inusitada explicação foi motivo de muita polêmica. Muitos não acreditaram. O prefeito eleito, entretanto, acatou o recém-aliado, reservando-lhe para o mais importante cargo da futura administração. Precisava de alguém competente para auxiliá-lo.
PS.: Este texto é puramente fictício. No entanto, foi escrito baseado num cidadão, bajulador de um figurão que dirigia uma extinta instituição federal no período do regime militar. Era o seu melhor amigo e mais influente auxiliar. No entanto, ao perceber que o esquema de corrupção operado por ambos fora descoberto, não hesitou em ser testemunha de acusação no processo administrativo que condenou o seu protetor. Como bom calculista, não deixou rastros. O “prêmio” recebido pela contribuição à moralidade foi um cobiçado cargo numa estatal.
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