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Os calouros

Personalidade discreta e o comportamento arredio não foram empecilhos para inibir a proeza, que surpreendeu aos presentes à competição de calouros do Cine Glória, especialmente seus colegas do Ginásio Laudelino Freire. A conquista do primeiro lugar fizera justiça à impecável interpretação dada ao sucesso da época — do cantor Reginaldo Rossi–, “O sombra”. Até então todos reconheciam entre as suas qualidades e méritos, a aplicação nos estudos, o elástico goleiro do time de futebol do Grêmio Cultural (segundo alguns, notável apreciador de frangos), o bom caráter e a obstinação em alcançar o que se propunha fazer. Porém, os dotes artísticos de Paulo Sérgio eram desconhecidos e não passavam no imaginário de ninguém.

De forma frustrada, dois anos antes, outro colega participara de uma competição semelhante. Apesar de possuir boa voz, conhecimento musical, inegável talento artístico e ser de temperamento extrovertido, Franklin Reis tropeçara no nervosismo, culminando numa apresentação pífia, que lhe valeu uma prematura desclassificação. Também reconhecido como aluno estudioso, inteligente e fluente em inglês, era vaidoso e metido a conquistador. Mesmo tendo boa índole, às vezes, pecava pela falta de humildade e não fazia cerimônia para exibir o seu lado mordaz, para ridicularizar a quem lhe parecesse rival, angariando assim, certa antipatia.

O sucesso fulminante de Paulo Sérgio (notadamente entre as meninas) foi decisivo para encorajar Franklin a uma nova tentativa. Confiante em superar o insucesso do passado, inscreveu-se para o concurso de calouros do domingo seguinte. Para a disputa, coincidentemente, escolheu a mesma música que consagrara Paulo Sérgio. Confiante em repetir o êxito do colega, enquanto exortava os demais a comparecer ao Cine Pérola, antecipadamente, trombeteava vitória. Soberbo, provocava os céticos: “Os outros que se cuidem porque o primeiro lugar é meu. Um raio não cai duas vezes no mesmo lugar”. A expectativa de vencer virou confiança e a confiança deu lugar à certeza de que o Laudelino teria outro campeão.

Como era de se esperar, no domingo o Cine Pérola ficou lotado. Todos queriam vê-lo cantar e ganhar. Entretanto, sem que ninguém desconfiasse, aqueles que o antipatizavam haviam tramado vaiá-lo durante a sua apresentação. Em minoria, porém organizados, sentaram-se em pontos estratégicos, aguardando o momento de desfechar o traiçoeiro golpe.

Ao chegar o decisivo momento, Euler Ferreira, o apresentador, visivelmente emocionado e torcendo muito, anunciou:

– Agora, o momento mais esperado desta manhã. Tenho a alegria de anunciar o meu amigo e favorito do programa, Franklin Reis! Ele vai concorrer cantando o sucesso, O sombra! Música, maestro!

Pálido, suando muito e indisfarçavelmente nervoso, o anunciado subiu ao palco. Para decepção da maioria e alegria dos poucos, Franklin desafinou feio. A orquestra entrou num tom e ele noutro. Desclassificado, saiu rapidamente (o raio caíra outra vez no mesmo lugar). Não houve tempo para vaias e nem mesmo para aplausos.

No dia seguinte, o Laudelino estava entristecido. Os amigos, solidários, evitavam o assunto. Os algozes, entretanto, não desperdiçaram a oportunidade para tripudiar do infortunado. Franklin, porém, fiel ao seu estilo, não perdeu a altivez e reagiu com peculiar superioridade: “Fiz o que tive vontade de fazer. Foi uma boa diversão. Não sou como vocês que têm vontade, mas não coragem”.

As duas tentativas malogradas fizeram Franklin desistir de ser cantor. Após a conclusão do curso ginasial, mudou-se com sua família para Salvador. Diplomado na Universidade Federal da Bahia, hoje é o Dr. José Franklin Fontes Reis, um dos mais notáveis peritos criminais da capital baiana.

Paulo Sérgio Oliveira Nunes, por algum tempo, ainda continuou cantando, porém, trocou pela medicina a promissora carreira artística. Foi prefeito da cidade baiana de Jaguaquara, onde realizou uma excelente administração, marcada pela probidade e zelo ao erário. Hoje reside e trabalha em Aracaju.

5 comments

Almiro Gustavo de Jesus

Lagarto, cidade brilhante, celeiro da cultura sergipana. Nos anos sessenta proporcionou aos seus adolescentes o privilégio de tecer assuntos diversificados de cultura, esporte, laser teatrais, shows matinais de excelentes calouros acompanhados de Los guaranis ao som dos trombones administrados pelos músicos Erval Moura e Queimadinho e tantos outros componentes da banda e o ilustre empresário Bosco. São quase cinco décadas de lembranças que nas matinês de domingo era nos proporcionado nas salas do Cinema Glória ou Cine Pérola verdadeiros espetáculos musical, são registros inapagáveis para aqueles que tiveram o privilégio de ser Lagartense. Calouros para todos os gostos, uns mais outros menos tímidos, fora ou dentro do compasso da música e a brilhante atuação do apresentador Euler Ferreira.
O calouro José Franklin Fontes Reis abandonou a carreira artística da música com a transferência de sua residência para Salvador. Aqui tivemos maior convivência dado aos estudos na UFBA. Paulo Sérgio, sereno e pacato, como colega do Ginásio Laudelino Freire, buscávamos nossos compromissos com os estudos como tantos outros colegas: Aloísio Reis, Luiz Oliveira Fontes, Marinalva Fontes, Neusa Maria, Rúbens (filho do gerente do BB), Aroaldo Nogueira, Antonio Fontes, in memoriam Divaldo Andrade, Fernandes de Irineu, Fonseca, Jaime Norberto. Nosso sucesso profissional está sedimentado nos conhecimentos adquiridos pelos nossos professores que com dedicação sabedoria nos orientou para o caminho de uma boa formação educacional. A Dr. João Rocha, Mons. Jason Barbosa Coelho, Rinaldo, Valdier, Messias e tantos outros, nosso obrigado.

Louise

Gostei muito deste texto, que retrata parte da cultura lagartense.

Francis

O Dr. Franklin é o meu referencial.
Por tudo, o meu muito obrigado, grande professor.

Rafinha

Falando do professor Franklin, que foi meu professor de Contabilidade II e de Contabilidade de Custos, é um dos melhores professores da Bahia, sem dúvida nenhuma. Hoje, do que aprendi, agradeço boa parte a ele.
Grande abraço

Paulo Sérgio Oliveira Nunes

Caro Antonio José,

Me transporto para muitos anos atrás, quando éramos colegas de ginásio, tendo como um dos nossos professores a figura dileta do seu pai Dr. João, que nos deixou a todos um legado valioso de conhecimento técnico, de exemplo de profissional correto, de homem honesto e de excelente professor que foi.
Acompanho com alegria e orgulho os seus escritos tão bem estruturados, com um fino viés do humor que àquela época não transparecia no aluno dedicado, estudioso e cobrado constantemente pelo pai exigente e cuidadoso sempre buscando uma peformance superior à média da nossa classe.
Vejo agora que deu grande resultado o esforço feito; pelo brilhante profissional da odontologia que demonstra ser, e também pelo fino traço do escritor, cronista de sua época que nos tem deliciado com seus textos registrando histórias que poucos tem conhecimento.
Confesso que alguns detalhes desta história, já não estavam armazenados nos labirintos da minha memória, mas fiquei muito impressionado com a reprodução de fatos e atos passados em tempos tão remotos.

Continue nos presenteando com muitas outras historias vividas em nossa querida terra.

Um grande abraço,

Paulo Sérgio Nunes

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