Os desafetos
Há muito tempo que os dois não se falavam. Quebraram o relacionamento quando ainda eram agricultores, antes de virem morar na cidade. Tornaram-se inimigos viscerais. Embora nunca tivessem trocado agressões físicas, um puxava o tapete do outro, e vice-versa. Vez ou outra dividiam provocações, quase sempre motivados por cunho político ou interesses, já que se agrupavam em partidos políticos opostos.
Um possuía o temperamento manso e sorrateiro. Inteligente, sabia como ninguém percorrer os atalhos para conquistar os seus objetivos. Não era do tipo de bater de frente, agindo mais escudado no manto obscuro da esperteza. No entanto, se preciso fosse, passaria por cima de quem estivesse à frete no seu caminho.
O outro fazia jus ao adjetivo com o qual muitos o apelidavam: bocão. Destrambelhado, para alcançar os seus interesses fazia uso da língua afiada. Dependendo da ocasião, tanto elogiava quanto difamava. Apesar de não possuir a sutiliza do outro, era muito mais esperto na arte de pressionar. Também não hesitava em agir nas sombras, “cortando” a cabeça até dos amigos, desde que percebesse ser essa a chance de lograr seu objetivo.
Naquela cidade – como ocorre quase em todas do interior – o poder era disputado de forma ferrenha, tendo à frente, invariavelmente, dois agrupamentos oligarcas se digladiando e, consequentemente, se alternando no comando político. Os chefes políticos, quando “de cima”, faziam as mais absurdas concessões, mesmo ao arrepio da lei, que existia quase como peça de decoração – câmara de vereadores, afinal, existia para aprovar o que fosse preciso. Daí a razão de logo no início da gestão que se findara, o rival do bocão ter conseguido junto ao então prefeito, a posse de um prédio situado na importante praça de eventos da cidade. Nesse local instalou um bar, que se tornou ponto preferido dos partidários do seu grupo.
O sucesso do rival no empreendimento despertou no bocão a inveja de também conquistar o mesmo privilégio. Durante o tempo em que estivera fora do poder alimentou obcecadamente esse sonho. Desejava-o não somente como meio de melhorar de vida, mas também como um feito complementar de vingança. Para ele a vitória nas urnas seria importante como fator político, mas havia algo pessoal a ser feito, que unisse o útil ao agradável, que lhe desse estabilidade financeira e, ao mesmo tempo, impusesse o ex-amigo à humilhação; mais precisamente, à falência.
Pouco antes do início da campanha eleitoral, esse assunto foi tratado pessoalmente junto ao seu chefe. Combinaram o negócio como se fosse uma espécie de compromisso “moral” a ser pago em troca “trabalho intenso” a ser desenvolvido. O negócio deveria ser prontamente quitado tão logo o prefeito eleito tomasse posse. Tratava-se da cessão de um velho galpão, pertencente ao poder público, que se encontrava ocioso, situado na mesma praça, no lado oposto ao estabelecimento do rival; lugar era o ideal para levar a termo o seu intento.
O resultado do pleito, que culminou com a vitória do agrupamento opositor, transcorrera de forma bastante acirrada, deixando sequelas e ressentimentos. O bocão, fiel ao seu perfil sorrateiro, não medira palavras nem atos para atacar os adversários, disparando agressões a torto e a direito, sem poupar nem mesmo os aliados, cobrando-os sempre por achar que não devotavam o devido empenho. Procurava, assim, mostrando “serviços”, chamar atenção do chefe para o denodo com que se entregara pela vitória. Dentre esses entreveros o mais agudo se deu com o locutor oficial do agrupamento, que quase os levou ao pugilato. Atacou também o falastrão professor Santana, tido como “ideólogo” do partido, acusando-o de gravar os próprios comícios para vender as fitas ao adversário. O clima de intrigas e agitação provocados pelo bocão não somente causou furor nas hostes adversárias, mas também na própria casa, cujos estragos foram contidos pela intervenção firme do chefe. As sequelas, como dito, viriam a aflorar mais tarde.
Vitorioso na política, acordo sacramentado e bar já instalado, o bocão partiu para a segunda fase do seu intento: “quebrar” o estabelecimento do rival, independentemente de ter conquistado momentâneo sucesso, principalmente para um negócio que mal começara. O instinto de maldade, acima de tudo, se mostrava mais forte. A vitória só seria completa se o concorrente fosse destruído.
No entanto, concorrer com o quem sabia negociar se mostrou ser muito mais difícil do que imaginara. O rival, que estava há bem mais tempo no ramo e muito mais experiente, praticamente não sofrera nenhum abalo. O bocão percebeu que o seu desafeto, sempre habilidoso no trato com os fregueses e bem cuidadoso com a qualidade e higiene dos produtos comercializados, dificilmente seria batido por meios leais. Haveria, portanto, de partir para outro, fosse lá qual fosse.
Como sempre acontece, a máxima de que quem agride esquece, mas que é agredido não, se fez valer. O locutor, embora quieto desde o sério entrevero da campanha, há tempos vinha maquinando uma maneira de se vingar. Bom observador, percebendo que os cuidados com que o desafeto do bocão mantinha com a higiene não eram os mesmos devotados pelo concorrente, aproveitou-se desse fato para engendrar uma trama diabólica, que se bem usada daria um belo golpe no seu algoz. Assim, como quem não desejasse nada, aproximou-se do rival, oferecendo préstimos publicitários.
A praça em que ambos estabelecimentos se situavam, como já dito, era um local frequentemente usado para realização dos mais variados eventos, em sua maioria de pequena expressão. Festejos de grande porte eram mais escassos e só aconteciam em datas especiais: Natal e Ano Novo, celebrações de cunho religioso, festejos juninos, etc. Seria preciso paciência para escolher o momento certo de pôr em prática o planejado.
A oportunidade, então, apareceu. No vindouro mês de junho, um grupo de sanfoneiros fora contratado por uma empresa local para uma apresentação na praça. O locutor, por coincidência, fora convidado para ser o cerimonialista oficial da festa, com carta branca até para contratar anunciantes. Com a “faca e o queijo” na mão, tratou logo de fechar acordo com o estabelecimento do outro, sem que o bocão de nada soubesse.
Embasado na tese de que para “confrontar um falastrão bastaria um falastrão e meio”, levou adiante seu bem urdido plano, cuja parte inicial consistia em espalhar na cidade um boato relativo à falta de higiene do bar do bocão. Para tanto se valeu da ingenuidade do professor Santana, usando-o como vetor de divulgação. Contou-lhe, sob “segredo” absoluto, um suposto fato, que dava conta de que um freguês fora surpreendido por um rato que caíra do teto diretamente no seu copo de cerveja, atestando a imundície que campeava no estabelecimento do bocão. Fingindo não acreditar no ocorrido, o locutor redobrou o pedido de segredo, embora, no fundo, tivesse a certeza de que Santana, afamado por ter a língua solta, faria o serviço de divulgação de maneira mais rápida do que fogo quando se alastra em pólvora. Não deu outra. Em poucos dias o assunto tomou conta da cidade.
No dia do evento a praça recebeu uma plateia jamais vista. No grande palco, instalado nos fundos, os sanfoneiros se revezavam levando os expectadores ao delírio. Em ambos os bares a descontração rolava solta. Todos se divertiam tranquilamente, quando, de repente, entre uma e outra apresentação, o locutor entrou com uma publicidade perturbadora:
–CERVEJA GELADA E COM HIGIENE SÓ NO BAR DE “FULANO”. LÁ O FREGUÊS SEMPRE TEM A CERTEZA DE QUE NÃO CAIRÁ DO TETO NENHUM RATO NO COPO DE CERVEJA.
O anúncio caiu como uma bomba. O suposto acontecido, que já ganhara o caminho do esquecimento, voltou com tudo. O bocão, completamente atordoado, ficava cada vez mais exasperado à medida em que era questionado pelos clientes. Possesso, sem disfarçar o ódio que sentia, disparava ofensas ao locutor e ao concorrente afirmando que os mesmos estavam mancomunados para tirá-lo do ramo. Completamente desorientado, passou o tempo que restava para a festa acabar jurando vingança. Começaria pelo locutor, a quem faria engolir a calúnia. Depois seria a vez do rival, que não perderia nada por esperar. O professor Santana, impassível, mas dando gargalhadas por dentro, a tudo presenciava sentado na sua mesa, junto à calçada.
Ao final da festa, o “bocão” não perdeu tempo. Cerrou imediatamente as portas do bar e partiu para o palco em busca do seu algoz. Encontrou-o justamente quando este descia as escadas. Sem mais nem menos, partiu para o confronto físico. Ambos se engalfinharam em luta corporal, num verdadeiro show de catimbas e sarrafos. O locutor impôs ao oponente um exemplar revés. Somente foram contidos com a chegada da polícia. De pronto, os dois foram levados ao quartel, sendo o primeiro prontamente liberado pela força das testemunhas que o acompanharam. O outro ficou preso, em que pese todo o poder político. O seu chefe, saturado pelos sucessivos aborrecimentos, entendeu que seria importante lhe dar um merecido castigo, não interferindo na decisão do delegado, que achou por bem só liberá-lo na manhã seguinte.
Passado o entrevero, os ânimos serenaram. Nem o locutor e nem o bocão trocaram mais palavras. Entre os desafetos a atmosfera se tornou mais amena. Surpreendentemente não trocaram mais provocações. Pelo contrário, passaram até a se cumprimentar, embora não abdicassem da politicagem. O desejo de destruir o estabelecimento do outro pareceu ter ficado para trás, de maneira a se supor que o rescaldo do entrevero não foi de todo desastroso. Sobraram coisas boas. Para o bocão, uma delas foi a imediata providência forrar o teto do seu bar.
Valeu a lição.
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