Turistas em apuros
O prognóstico para o pleito que se aproximava era sombrio. Ninguém acreditava na possibilidade de vitória sobre as forças da situação. Porém, a necessidade de lançar uma chapa de oposição para concorrer ao cargo majoritário municipal – e que ao menos tivesse uma participação honrosa – manteria viva a chama da liderança política de Dionísio Machado. Por isso, não houve nenhuma objeção à única condição imposta por Dr. João para aceitar a penosa missão confiada pelo velho caudilho: a prerrogativa de indicar o seu candidato a vice-prefeito. Contrariando a cúpula do partido, o escolhido foi Eliseu Martins, um comerciante bem sucedido, muito estimado no município, de temperamento extrovertido e desprovido de vaidade. O seu jeito cordato no trato com as pessoas, acrescido a uma espécie rara e emblemática de carisma, explicavam a expressiva votação obtida no pleito anterior, fazendo-o o vereador mais sufragado.
Ao contrário de hoje, àquela época as pessoas valiam mais pelo que eram do que pelo que possuíam. Não se falava em milhões, bilhões ou qualquer coisa semelhante. Os gastos de uma campanha política se resumiam ao custeio da publicidade, dos comícios e coisas afins. Não havia a profissionalização dos famigerados “cabos eleitorais”, o acintoso alarde de compra de votos e nem mesmo o vulgarizado festival de pesquisas eleitorais. A seriedade e o espírito público prevaleciam. Por isso, a chapa formada ganhou credibilidade e começou sua caminhada numa espiral ascendente mantida até a esmagadora vitória.
O embate eleitoral, entretanto, teve um trajeto duro e desgastante, deixando os contendores extenuados e necessitados de um merecido repouso. A idéia de viajar, tão logo se encerrou a apuração dos votos, apresentou-se como uma fórmula perfeita para juntar diversão, descanso e comemoração, sendo prontamente aceita por ambos. A rota turística escolhida levava em conta lugares do sertão nordestino (onde Eliseu mantinha contatos através do comércio de fumo), passando pela cidade de Valença, no estado do Piauí, que nessa ocasião vivia um clima tenso em razão de um bárbaro crime político.
Hospedados em Valença, enquanto Dr. João descansava, Eliseu resolveu dar um giro pela cidade a bordo do vistoso opala verde, de óculos escuros, chapéu, portando o inconfundível cachimbo e ao som das canções de Waldick Soriano, alheio aos maldosos e funestos rumores que ganhavam corpo em meio aos transeuntes: “o homem contratado para vingar a vítima chegara”. O périplo, no entanto, acabou sem nenhum percalço.
No final da tarde, o ambiente sereno e feliz da pensão foi quebrado com a chegada do delegado, disposto a investigar a veracidade dos tais rumores. Cumprindo os deveres de cidadãos, ambos se identificaram e não fizeram nenhuma objeção às revistas do veículo e dos aposentos. Nada sendo constatado e nem encontrado, tudo levava a crer que o mal entendido estava desfeito. Surpreendentemente, tomado por um acesso de fúria e espumando como um cão raivoso, o policial deu voz de prisão ao assustado Eliseu. Imune aos argumentos apresentados em contraposição àquela arbitrariedade, o sujeito, cada vez mais impertinente, cheio de trejeitos, completamente descabelado e soltando uivos histéricos, insistia em levá-lo até a delegacia. Antevendo um desfecho humilhante e injusto, a dona da pensão, indignada, porém segura de si, interveio de forma decisiva em favor do seu velho amigo e pôs as coisas nos seus devidos lugares. Proferindo uma merecida reprimenda transformou o valente policial num dócil cordeirinho. Este, devidamente enquadrado e percebendo a chegada do prefeito, transferiu a sua ira em direção à multidão postada à frente da pensão, dispersando-a.
No dia seguinte, como forma de reparar o lamentável incidente e desfazer a má impressão causada, o prefeito ofereceu um almoço aos ilustres visitantes. A paz foi definitivamente selada. No entanto, a razão da repentina metamorfose do delegado jamais foi conhecida. Desconfia-se que não foi somente pela reprimenda. Deve ter sido, também, por algo muito mais forte.
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