A Praça
Nenhum outro canto reúne tantas saudades e conteúdos de emoções, como ela, respeitável senhora encravada no coração da cidade, marco de histórias que continuam fazendo registros incontáveis que se confundem entre o infinitamente alegre e o eternamente triste. Ela adormece e acorda com a responsabilidade de ser a guardiã da Senhora Piedade. Refiro-me à Praça da Matriz, eterna referência do meu interior geográfico, pois, entre ruas e avenidas, becos e tantas outras praças, largos e conjuntos habitacionais, é, conforme sentimento que se explica aqui no peito, o marco mais importante e visível, a referência que ecoa com bênçãos e orações, em nome do Pai e do Filho.
Nela eu provi minha alma do mais nobre dos sentimentos, chorando, ao lado de amadas e de amigos, colhendo saudades que se deitaram no campo santo, após tristes despedidas em inesquecíveis finais de tarde na porta da igreja, no convite ao descanso oferecido pelo palanque, no seguir do caminho que a praça oferece para o desfecho mais triste e desesperado, ao soar melancólico e cruel de sinos com sua mensagem inapelável, passo a passo na cadência da procissão dos mortos, seguindo o mesmo trajeto já percorrido por tantos dos nossos…
Cada casa da Piedade, exatamente cada uma delas, partindo da que foi domínio do Seu Rosendo, patriarca da família Ribeiro, seguindo o caminhar por toda a estrutura da praça – passando pela casa paroquial, Zezé de Julinha, Manuel Dentista, sede da Prefeitura, Ursulino Loiola, Adalberto Fonseca até chegar ao solar que pertenceu ao sereno e respeitável José Vicente de Carvalho, entre outras mais, observa-se que elas são testemunhas de uma cidade que ganhou corpo exatamente ali, com o surgimento, em 1655 – conforme registros mais confiáveis – da capela que daria vida à igreja.
Vida à igreja e à praça que deu asas a minha bela cidade.
Quando criança, após ouvir na praça a execução de um hino, executado pela Banda de Música, perguntei a meu pai que música bonita era aquela a despertar um canto respeitoso e de visível emoção. Mesmo garoto, deu para perceber o orgulho refletido nos olhos e na resposta dada por ele. Disse-me: ‘é o hino a Nossa Senhora da Piedade, letra de Etelvino Dantas e música do meu pai, o seu avô João Ferreira’ – fez uma pausa, respirou profundo e concluiu enquanto olhava distante: ‘João Ferreira do Espírito Santo’. Pôs-me no colo, fez gesto de maestro com hipotética batuta, e cantarolou:
Ó Virgem Mãe, ó Mãe da humanidade
Ó Padroeira desta terra tão querida
O teu olhar de ternura e castidade
Nos conforta nos embates desta vida…
Transcorridos tantos anos desde aquele evento, até hoje duas músicas religiosas mexem com minhas emoções: o Hino da Padroeira de Lagarto e a Ave Maria.
Quis o destino que todas as execuções que eu ouvi do hino foram na praça da Matriz, graças a competência de bravos personagens que já não estão por aqui. Tocando e marchando de forma desajeitada, olhos fixos nas partituras coladas na memória, retilíneos ou curvados a depender do peso do tempo nas costas, os músicos que constituíam a banda mereciam respeito e aplauso. Eles nos doaram concertos magníficos, em retretas que povoam nossas recordações. Pistons, trombones, clarinetas, saxofones, tubas e vários outros instrumentos de sopro, faziam ressoar no território da praça velhos dobrados de inconfundível beleza. Confesso que uma banda tem o poder de reavivar a memória de um povo, em torno de suas raízes culturais. Certamente que no passado muito mais do que agora.
“Coloquem uma banda de música na rua e o povo a seguirá para a festa ou para a guerra” – a frase de Napoleão Bonaparte é quase perfeita.
No correr do tempo, independente da época, a banda sempre exerceu um forte fascínio sobre mim. Influência do meu avô, sem dúvida. Na verdade, sinto agora, como senti no passado, criança e adolescente, uma cumplicidade nascida a partir de meus ouvidos sinceros, disponíveis à beleza da arte que tem o delicioso poder de fazer festa no espírito dos que prezam o dom gerado por Deus.
A Banda de Música, decadente em algumas cidades, é um dos mais perfeitos símbolos de uma época. Doce saudade a amordaçar o choro incontido, sombreando com o toque da inspiração um passar do tempo que se conta, não apenas nos contos extraídos do seio da fraterna família mas, com certeza, também na construção de ambientes nascidos exatamente onde a relva namora o orvalho, bafejado pela flor que ao despontar, relembra outras ilusões gostosas que enfeitam a menina cuja beleza resiste no contorno de nossos olhos. Quantas vezes eles, os meus olhos, descortinaram, em cumplicidade com o coração, o sentimento de grandeza que a música oferecia à praça. Da sacada superior da residência de José Vicente de Carvalho – o Solar dos Carvalhos – eu me ofereci silencioso para ver a banda passar com seus músicos, desfrutando um deleite consciente por conta da vontade íntima de ser um deles, de estar ali na percussão,velejando meu sonho no mar de minha praça.
Ali, no Solar dos Carvalhos, eu era mais do que espectador privilegiado da praça. Muitas vezes quando a tarde sentia o frescor do entardecer, sentava à mesa da copa para o café com pão quente, gostoso. Era a prévia do jantar em família. Um rito, sempre no mesmo horário, hoje como amanhã. Não há como esquecer daquele ambiente amigo. Na cabeceira, uma mulher de rosto sereno, olhar bonito, sorriso largo, às vezes tímido.
Uma senhora do lar, da praça e da igreja.
Uma mulher de Deus.
Santa Julieta.
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