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A viúva do Lagarto e o homem de Aquidabã

Raparigueiro com direito a pijama e escova de dentes no Cabaré de Rosa, na outrora suspeitíssima Rua da Linha, em Propriá, Juraci resolveu ter mais consideração pela patroa. Verdade. Jurou a amigos que estava decidido a dar um novo rumo à sua vida. É, andou imaginando, meditando lá com seus botões e achou conveniente deixar de gastar sapato a caminho do pecado. Ele ficou assim desde aquela bendita madrugada, quando chegou em casa literalmente de cueca trocada, e o pior, flagrado por dona Estela vestido no enorme cuecão colorido de Acelino, colega de orgia na escuridão do quarto de Rosa. Só que na versão de Juraci, a infeliz troca de peças íntimas tinha acontecido na cidade vizinha de Cedro, após jogo beneficente de futebol de salão.

Pois é. A cena da cueca trocada não saia da cabeça do contumaz pecador. Sentado no banco da praça da matriz, ele passou uma tarde inteira se remoendo de remorso pelas mentiras que levava para casa, uma variedade incrível de situações tiradas de não sei onde, mas que cabiam sob medida no entendimento da santa de oratório que tinha em casa. Angustiado e com remorso, teve o repente inimaginável de sair em direção a Catedral para se confessar ao Bispo.

– Vou, vou contar que sou safado, desavergonhado, libidinoso, lascivo, indecente e manhoso,viciado nas refregas cabarelentas que ferem não apenas os sagrados mandamentos, mas também a correção do meu lar, agredindo aquela inocente criatura que me dá carinho por demais e ouvidos dadivosos. Ai, meu Deus! Ela merece não, ó meu Pai!

Falava sozinho, estava arrasado.

Quando pôs os pés na sacada da catedral, parou indeciso, olhou para trás como se procurasse o seu outro eu, o personagem que se vangloriava em ser o único a beijar a boca de Rosa. Um pouco mais ou menos ele entendeu que ali, emoldurado na porta da igreja, estava o cidadão recatado e acostumado às missas semanais domingueiras – acompanhado da mulher e dos três filhos – com direito a dízimo generoso e… êpa!, umas olhadelas fortuitas na preferência nacional de Matilde, colega de trabalho, dona de singular saúde física, que, por uma dessas coincidências, sempre estava à sua frente na fila da comunhão…”com aquelas ancas que me levam à loucura!” – pensou o pobre pecador.

– Vai-te satanás! – disse em voz alta, ao tempo que recuou em direção à praça da catedral, seguindo com passos nervosos e rápidos rumo à Rua da Frente ignorando o vento gostoso oferecido pelo Velho Chico, já visível ao olhar desesperado do raparigueiro compulsoriamente aposentado por decisão própria, em nome dos ditos bons costumes. Na Rua da Frente, andando rápido e de braço dado com o inseparável guarda-chuva, ele ignorou o ‘boa tarde’ dos aposentados que costumavam todos os dias, no mesmo horário, trocar dois dedos de prosa para ajudar o tempo a passar, se bem que para eles isso já não interessava tanto. Juraci entrou no restaurante Mangaba, escolheu uma mesa isolada que lhe deixasse de cara com o riozão. Ficou ali um bom tempo só olhando, imaginando como conciliar uma situação para ele irreversível. Quando pensava na cueca trocada, na mulher direita que tinha em casa, no cheiro de cabaré que exalava de seus poros, vixe! – ficava revoltado, doido para sair pedindo perdão a Deus e ao mundo como forma de castigo. Uma espécie de autoflagelo, desnudar-se da safadeza para vestir a roupa da retidão.

Mirando o rio, com olhar de timoneiro sonolento, Juraci amparou a lágrima que escorria pelo queixo. Uma única lágrima, marco zero de uma nova vida que surgia.

– Quando me levantar daqui, o Juraci do passado vai ficar enterrado nas profundas desse rio confidente de minhas tristezas – jurou.

Ainda buscando reforço para seu renascimento, ele foi mais além:

– Ao sacrossanto do meu lar me dedicarei; na alegria e na tristeza vou estar ali com minha santinha, sendo presente na cama só com ela – e repetiu ‘pensando’ alto – só com ela e dentro dos preceitos sagrados referendados pelos santos escritos bíblicos.

Em seguida, na boquinha da noite, levantou-se e tomou o caminho de volta para casa, aliviado e até cantarolando uma música cuja letra exaltava o poder da igreja e da família. Passou ao lado da catedral cantando baixinho, meio saltitante, balançando o guarda chuva.

Do outro lado da rua, ao ver Juraci dando saltinhos, “Das Dores” – enfiado em minúsculo short jeans e apertadíssima camisa cavada – não se conteve:

– Psiu!

Com a periferia do olho direito mapeando a área, Juraci percebeu que o psiu vinha do gasturento cozinheiro do hotel Floraeliza, amigo íntimo de Rosa, organizador de – com licença da má palavra – horrorosos shows eróticos nos mais concorridos cabarés da Rua da Linha.

– O renovado marido da dona Estela continuou seu caminho, a passos largos, mas sem os saltinhos de antes porque aquilo era coisa feia – ele próprio chegou a essa conclusão, já um tanto envergonhado.

– Psiuuu, Juraaaaa!!

Aí, não teve jeito. Odiava quando ele lhe chamava assim. “Mas, quem manda dar ousadia a esse pederasta”, praguejou irado.

– Oi, Das Dores, novidades?
– Nada, não. É que notei o danado com jeito tão alegre que resolvi lhe convidar para o evento de hoje à noite.
– Que evento?
– Lá na Linha, vamos botar o trem nos trilhos – riu escancaradamente, com a mão direita ‘nos quartos’, enquanto a direita dava tapinhas no ombro de…Jura!
– Ah, mesmo?
– É, querido, vai ser ‘A Noite do Trenzinho’, liberado para os três sexos. Não vai ser uma maravilha?

Juraci ficou irreconhecível:
– Cabra, me respeite! O Jura, ou melhor, o Juraci que você conheceu não existe mais. Agora vivo para a família. Era só o que me faltava, ‘noite do trenzinho’! Homi, me deixe!

– Mas, Juraaaa!!

– E não é só: diga a sua amiguinha, a dona Rosa, que nosso compromisso a-ca-bou. Bem entendido? A-ca-bou!

Seguiu em frente, com a mais absoluta certeza de que um milagre estava em curso. Ele, homem que nasceu para as raparigas, cabarezeiro de primeira, renunciando orgias, ‘noite do trenzinho’! Era demais.

– Milagre, Senhor, milagre! – a palavra caminhava com ele.

Realmente, os dias que vieram revelaram um cidadão mais dado ao lar, brincalhão com os filhos, carinhoso com a mulher a quem dispensava embates sexuais quase que diários, deixando-a imensamente feliz. Só que, desatento, às vezes na cama tentava colocar em prática alguns, digamos, estilos herdados do Cabaré de Rosa. Naqueles momentos, a pobre da mulher, anos e anos acostumada ao tradicional ‘papai e mamãe’, se esquivava morta de vergonha:

– Meu filho!

Por mais que ele tentasse impor disciplina aos ímpetos sexuais sem as influências herdadas de sua longa vida nas orgias em ambientes suspeitíssimos, vez por outra cometia excessos, afinal não era de ferro – tinha mestrado e doutorado conferidos pelas mais freqüentadas instituições do baixo meretrício da região sanfranciscana, sediadas de uma margem a outra entre Sergipe e Alagoas. Certa noite, na cama, quando tudo parecia que ia muito bem, dona Estela deu um chega pra lá no marido, benzeu-se ao tempo que exclamou indignada:

– Não, Juraci, por essa via não! Como se não bastasse o outro problema, agora você me vem essa imoralidade?

O ‘outro problema’, a que se referia dona Estela, era coisa antiga. Contra ele, o casal vinha lutando há mais de 20 anos, com altos e baixos. O que se comentava na época é que muitos homens nascidos em Aquidabã, a exemplo de Juraci, levavam para cama o dito problema.

Depois do incidente – por ter tentado fazer amor por outra via – Juraci e dona Estela passaram uma semana distantes, esquisitos. Ambos envergonhados. Certa noite, meio depressivo, ele pegou o guarda-chuva e saiu para se distrair, ver as modas, jogar conversa fora com alguém. Quando passava na praça do cemitério, ao lado da rua Capela, notou que a casa da esquina já não ostentava a placa de ‘alugá-se’. Uma jovem senhora, bonita, cabelos negros, seios generosos, pele clara, estava na porta. Impulsivo, ele refez a trajetória de seu caminho, deu a volta na praça e retornou com aquele jeito compenetrado de quem acompanha procissão.

Ao chegar diante da porta da casa, cumprimentou a moradora, mostrou-se surpreso em ver que o imóvel já estava alugado (mentiu, ao revelar que um amigo tinha interesse), perguntou a origem da família, elogiou a vizinhança, enfim, deu as boas vindas, demonstrou gentileza de anfitrião educado e prestativo. Antes de se despedir disse que era casado, pai de três filhos, funcionário do Banco do Brasil, líder das quermesses diocesanas, orador nas festas comemorativas à Páscoa e, claro, freqüentador assíduo das missas dominicais.

– Das 10 horas, na Catedral. E é Juraci. Juraci é o meu nome, um servo às suas ordens. Boa noite, então.

Deu o passeio por encerrado, convencido que tinha causado boa impressão. Da mulher soube mais do que o necessário: de nome Maria Helena, 28 anos, viúva, dois filhos, costureira, tendo Lagarto como origem.

– Viúva. E ainda por cima bonita a danada, e que pernas, que ancas salientes, que peitos! – pensou enquanto retomava seu passeio despreocupado com o destino, desde que não fosse parar na Rua da Linha. De jeito nenhum! – falou alto olhando para o inseparável guarda-chuva. Sentiu que as coisas estavam mudando, o mau-humor tinha ido embora, já podia voltar para casa, tentar reatar a boa conversa com dona Estela, e, quem sabe, fazer algum chamego com ela, mas sem excessos. Quando ele pensava nisso ficava mal. Sem falar naquele outro problema atribuído a alguns homens nascidos em Aquidabã.

Os dias foram correndo. O relacionamento em casa foi retomado, o cabaré de Rosa era coisa do passado. Do presente mesmo só a amizade que florescia entre Juraci e a viúva.

Todas as noites passava em frente à casa dela. Quando a porta estava aberta ou apenas encostada, batia palmas. Ao vê-la, dizia que passava ali por acaso; deixava balas para as crianças. Perguntava se precisava de alguma coisa. Prometia lhe trazer um surubim, ’o mais gostoso do São Francisco’. A viúva começou a comer peixe fresquinho duas vezes por semana. O tradicional doce de batata de Propriá, levado por ele, caiu nas graças dela e das crianças. Certo dia, Maria Helena pediu que ele trocasse uma lâmpada queimada ‘lá no meu quarto’. Juraci estremeceu só de imaginar que ia conhecer a cama em que ela dormia.

Depois de algum tempo, a amizade estava consolidada. Decidido, ele ensaiou maneiras de falar de sua paixão por tão bela lagartense. Estava obcecado, fazia amor com dona Estela pensando na viúva. Nas conversas que mantinha com ela, falava de solidão, de quanto deve ser triste a vida de uma mulher sem um homem em casa. Certa feita, para impressioná-la, fazendo cara de tristeza, chegou a revelar que não era feliz no casamento e que nutria a esperança de encontrar sua alma gêmea. Triste, respirou fundo e despachou:

– Apesar disso, depois que casei nunca estive com outra mulher.

A viúva chegou a sentir dó. Um homem tão bom, tão puro, ali, abatido, precisando de afeto. Passando habilmente o lenço nos olhos, ele se despediu.

– Até qualquer dia, já não sei quando volto, não me sinto bem.- Saiu cabisbaixo, demonstrando abatimento.

Quando chegou na calçada da praça se recompôs esfregando as mãos, entusiasmado porque o projeto de conquistá-la estava indo muito bem. Para ele, tudo agora era só uma questão de tempo. Mexer com o emocional da pretendida.

Uma semana sem dar notícia. Dez dias. A viúva, acostumada com as visitas que se tornaram constantes, lamentava a ausência de Juraci. No décimo segundo dia ele reaparece. Sem aquele viço de antes. Ao contrário, até parecia que tinha perdido a noite em velório de pessoa querida. A iniciativa da conversa partiu dela:

– Meu filho, me diga, porque você está assim tão abatido? É por minha culpa? Posso fazer alguma coisa por você?

Ao ouvi-la dizer ‘meu filho’ quase teve um orgasmo, mas manteve a fleuma depressiva.

– Poder, pode. Mas, foi justamente por isso que eu me afastei.
– Mas, me diga, vá, por todos os santos, me diga!
– Maria Helena, que os céus me perdoem, mas pela primeira vez eu desejo quebrar o juramento feito no dia do meu casamento. Eu não queria, Deus sabe que não, mas me apaixonei por você, sonho tê-la em meus braços.

Sentada, Maria Helena apoiou o rosto nas duas mãos. Ficou pasma.

– Crendeuspadre! – exclamou enquanto se levantava da cadeira.

– Juraci, Juraci, eu não saí do meu Lagarto para infelicitar família nenhuma. Filho de Deus, o que você espera de mim?

Ele sabia que era ‘agora ou nunca’.

– Minha menina, só quero um pouco de chamego, de acalanto bem respeitoso. Vixe, que paixão, que amor, meu Deus! – disse olhando para o céu (que descarado!).

Mãos trêmulas e suadas, Juraci esfregava as pernas avexadíssimo. À sua frente, olhar perdido no alto da parede, Maria Helena entrava na mira de tiro do cabarezeiro.

– Também não sou de ferro, eu sei. Viúva jovem, meu corpo reclama por sexo, mas me satisfazer logo com um homem casado, fiel. Eu não vou me perdoar!

– Está certo, queira não. Vou-me embora de sua vida e da cidade que adotei como minha. Peço transferência para bem longe, quem sabe, sertão do Piauí. Morrer por lá como ermitão abandonado.

-Ô, meu Deus, e agora, o que faço? – choramingou a viúva.

Depois de pensar por alguns instantes, Maria Helena pediu que Juraci olhasse nos olhos dela. E falou com muito cuidado, de forma gentil:

– Tudo bem, Juraci, mas tem outra coisa. Andaram me falando que você é de Aquidabã. É verdade?

– É verdade. – por essa ele não esperava.

– Sendo de Aquidabã quer dizer que você é chegado a uns gritos histéricos quando faz amor. É verdade?

– É mentira, conversa do povo, dessa gente desocupada, fofoqueira. Creia em mim, só me dando uma oportunidade é que você vai saber que é conversa essa história de macho de Aquidabã fazer escândalo quando ama…

Ela acabou se convencendo que Juraci estava certo. Homem como ele, no entender de Maria Helena, estava em extinção. Direito demais, certinho demais. Não, não tinha o perfil de ser escandaloso. ‘Imagine, ele com aquele jeito de papa hóstia’, pensou esboçando um lindo sorriso.

Acertaram para sábado, um pouquinho antes da meia noite, ali no quarto dela.

Minutos depois, dona Estela viu chegar em casa o homem mais feliz do mundo.

– Gosto de ver você assim, alegre.

Após beijá-la no rosto, Juraci lhe pediu um favor:

Meu anjo, anote: quando sábado chegar me lembre que eu tenho reunião do Lyons Club, na AABB, e depois uma sessãozinha de jogo de dominó no Cavalheiros da Noite. Como tenho uma cabeça esquecida é bem capaz de não me lembrar.

– Ah, que bom. Eu andava até preocupada porque você nunca mais tinha saído para se divertir. Mas, lembre-se que ainda está em débito comigo.

– Eu… em débito? – Juraci tremeu.

– É, sim. Está me devendo aquele golzinho perdido em Cedro, naquele dia do cuecão de Acelino – disse rindo graciosamente.

Por causa de tanta inocência, Juraci a premiou com uma noitada de amor, sem excessos, é claro. Mesmo porque…

Sábado, 11 da noite, ele entrou pela porta dos fundos da casa da viúva, sem barulho, sorrateiramente. Maria Helena o esperava vestida em camisola preta decotada, revelando seios fartos. Os cabelos molhados acentuavam a sensualidade. Juraci sentiu que ela cheirava a Jasmim dos Açores, flor que só abre e perfuma à noite. Tudo estava conforme a encomenda. No quarto, enquanto o danado tirava a roupa, a viúva fez um último alerta, falando baixinho:

– Por favor, sem gritos, tem meus filhos, a vizinhança, minha reputação… Promete?

– Não se preocupe, meu bem, vai ser pianinho, pianinho.

Minutos depois de começada a peleja entre a viúva do Lagarto e o homem de Aquidabã, ele urfava, urfava, e suava, suava. Era uma agonia danada, e um não me toques, um sai pra lá, uma coisa gasturenta, uma vontade de gritar ‘segura peão’, de abrir o peito…

De repente, o bicho ficou todo arrupiado. Aí não teve jeito, foi um deus nos acuda:

– Quem foi que disse que eu griiiiitooooooooo! Eu não griiiiitooooo, não!
– Ô coisinha boa da peste. Uaiiiiiiiiiiiiiiiiiii!

As crianças acordaram, o guarda noturno apitou enquanto se afastava correndo das proximidades do cemitério por achar que era coisa do outro mundo, os cachorros latiram, lâmpadas das casas dos quarteirões próximos foram acesas. Uma confusão dos diabos.

Por muito tempo os gritos da tal ‘alma penada’ foram contados em prosa e verso. A viúva, envergonhada retornou para o Lagarto. Quanto a Juraci, bem, ele concluiu que era preciso dar um basta em suas safadezas fora de casa. E com razão. A patroa tinha contratado a nova empregada da família. Marly, 18 aninhos, morena feito Gabriela de Jorge Amado, recém chegada de Piaçabuçu, interior de Alagoas.

Ao comentar a respeito com uma vizinha, dona Estela foi mais uma vez generosa em excesso.

– Menina prendada, cozinha bem que é uma beleza. Até Juraci, tão exigente, que nunca dispensou a comidinha feita por mim, achou o tempero dela supimpa. E não é só, Marly dorme no serviço, não vai chegar atrasada nunca! Essa menina é uma dádiva caída do céu.

‘Crendeuspadre’!

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