Drops Jornalísticos 3 – Atropelado pelo doutor Ulisses
Na campanha política de 1986 recebi convite da agência de publicidade NM para viajar por alguns estados com a missão de colher depoimentos de importantes políticos brasileiros, solidários à candidatura de José Carlos Teixeira ao Governo de Sergipe. Falas que, segundo a NM, iniciais do publicitário Nairson Menezes, deveriam ou poderiam ser veiculadas em emissoras de TVs de Aracaju.
Apesar da atraente proposta financeira, a princípio pensei em não aceitar o convite porque sabia que trabalhar para políticos em ano eleitoral certamente queimaria a minha imagem junto a opinião pública podendo ser fatal para uma carreira jornalística que se encaminhava de forma promissora.
O problema foi contornado a partir do momento que o staff formado em torno do candidato José Carlos entendeu que eu estava certo e que eles, Nairson e Tarcisio Teixeira (pessoa formidável, irmão de José Carlos) na verdade precisavam mesmo era de minha experiência como jornalista acostumado a entrevistar grandes personalidades por conta das intervenções diárias nos telejornais da TV Sergipe. Liberado pela emissora e definido que do repórter só poderia aparecer a mão segurando o microfone, fechamos o negócio.
A missão seria cumprida em quatro estados: Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Comigo seguiriam o cinegrafista Lula e o produtor Hugo Julião.
Voamos para o Rio com a missão de entrevistar o Presidente da Câmara dos deputados, Ulisses Guimarães. Naquela época o Presidente do Brasil era José Sarney por conta da morte de Tancredo Neves, mas o homem forte era Ulisses Guimarães. Além de ocupar as presidências da Câmara dos Deputados e a do PMDB, partido que detinha 80% dos ministérios e a maioria dos parlamentares, ele era o substituto legal de Sarney e a figura mais carismática da república. Por onde andava atraia multidões.
No Rio, instalados em um hotel em Copacabana ficamos na expectativa de que a nossa base, em Aracaju, nos passasse a agenda que o grande líder do PMDB cumpriria na Cidade Maravilhosa. Depois de algumas horas de espera Nairson Menezes liga para Julião informando, conforme previsto, que no dia seguinte o Deputado Ulisses seria homenageado com um almoço no Rio Othon Pálace Hotel, lá mesmo em Copacabana.
Três horas antes do almoço chegamos ao hotel. Logo na recepção o gerente se deixou enganar pelo microfone que eu segurava com a logomarca da Globo. Se impressionou tanto que nos encheu de gentilezas, inclusive abrindo as portas de um enorme salão onde seria servido o almoço, parando exatamente na enorme mesa redonda que abrigaria o homenageado e outras importantes autoridades da república. Lépido, desenhando o cenário que seria formado a partir do momento que ‘doutor Ulisses’ pusesse os pés naquele ambiente requintado, o produtor Hugo Julião, fez hipoteticamente o trajeto a ser percorrido pelo objeto de nosso desejo, contando repetidas vezes os passos a serem dados pelo líder peemedebista até a bendita mesa que lhe fora reservada. Segundo o meu produtor, nossa câmera montada em um tripé ficaria a um metro da vistosa e longa passarela vermelha a ser percorrida pelo deputado. Sobrava entusiasmo naquele esforçadíssimo Hugo Julião, como sempre cheio de detalhes:
-Veja bem, Euler, acompanhe o meu raciocínio e perfomance no caminhar como se eu fosse ele, Ulisses, é claro. Eu venho andando, andando e andando – pam,pam e pam – aí, de repente – quando a distância para o tripé com a câmera for de três metros, você, que lá está, sai ao meu encontro quando então faz a pergunta. Claro que eu vou parar para ouvir e responder. Não vai ser diferente com o doutor Ulisses!
Depois, o autoelogio:
– Perfeito, não?
– Perfeito – respondi sem ter a mínima certeza.
Ficamos os três – eu, Julião e Lula –trancados dentro daquele enorme e belíssimo espaço do Rio Othon Palace Hotel aguardando e aguardando. Uma hora e meia depois, o gerente abre a monumental porta e diz: ‘o doutor Ulisses está a caminho’. Avisou e saiu nos deixando novamente fechados. Um pouco mais e logo o primeiro alvo de nossa missão no Rio viria tranqüilo ao meu encontro para a entrevista, conforme o Julião tinha previsto e ensaiado nos mínimos detalhes.
– Não se esqueça, Euler: doutor Ulisses vem caminhando sobre o tapete vermelho. Quando ele estiver a três metros do Lula, que já estará filmando, você vai em frente, ao encontro dele.
– Tudo bem, Julião.
De repente, a porta se abriu. Deu, sim. Eu juro que deu para ver os cabelos brancos do doutor Ulisses que entrou protegido por uns quatro guarda-roupas e uma multidão de aliados do PMDB tentando a todo o custo evitar que mais de cem integrantes da imprensa que vinham a reboque– jornalistas, cinegrafistas, fotógrafos e auxiliares – se aproximassem do homenageado, atrasando o almoço.
Bem, aí o leitor há de me perguntar: e quanto ao planejado, a minha entrada no tapete ao encontro do doutor Ulisses, a pergunta e a resposta, enfim, a entrevista?
Desnecessário dizer que por pouco não fomos atropelados pela multidão. O pobre do cinegrafista Lula abraçou o tripé com o resto do equipamento, enquanto buscava proteção em um dos prováveis banheiros. Este repórter que vos fala, caiu para trás ao tentar se proteger do primeiro guarda-roupa que veio rápido de braços abertos à frente do homenageado na tentativa de evitar invasões indesejadas na dita passarela que o Julião tinha programado apenas para o doutor Ulisses e (imagine) eu. Quanto a ele, Julião…Bem, estava há dez metros de distância, rindo, rindo sem parar daquele tsunami que em nenhum momento chegou a ser previsto.
-Cara, isto é uma loucura…ah,ah,ah…que loucura, cara!
Todo o pessoal da imprensa foi obrigado a se retirar sem conseguir entrevistar a grande figura da república.
Também não tinha como esperar o final do almoço para uma segunda tentativa. De Aracaju, Nairson Menezes informava que às três horas nosso compromisso seria com o governador Leonel Brizola no Palácio das Laranjeiras.
Era preciso correr, estávamos atrasados.
DROPS JORNALÍSTICOS – 4
O Microfone da Globo
Chegamos ao Palácio das Laranjeiras, sede do governo fluminense, perguntando pelo Secretário de Imprensa, aquela altura enfurnado no gabinete dele ou em trânsito por conta do horário do almoço. Foi o que nos disseram. O tal gabinete ficava literalmente nos porões do palácio, construído entre os anos de 1909 e 1913. Não dava para esperá-lo ali porque era excessivamente pequeno, desconfortável, tinha aspecto um tanto medieval e cheirava a mofo.
Esperto, Julião procurou informações sobre nossa audiência marcada pela turma de Aracaju.
– Bicho, não tem nada marcado! Que loucura, cara!
Falou assim um tanto incrédulo como se duvidasse do que tinha ouvido, só que de imediato desandou a rir enquanto caminhava de um lado a outro de forma desencontrada como se aquilo o ajudasse a encontrar uma solução adequada conforme exigia o momento.
Virtudes no Julião nunca faltaram. Otimista desde criancinha, ele é alegre, brincalhão, bom companheiro de trabalho e de viagem, inteligente e espirituoso o suficiente para manter em alta o astral de quem trabalhava com ele.
– Não esquenta, não esquenta. O rato de porão chega já para resolver nosso pequeno problema.
Eu e Lula deduzimos que o rato de porão devia ser o tal secretário de imprensa que só apareceu quando começou a entardecer.
Nos atendeu lá mesmo no porão. Diante da timidez das acomodações e da falta de cadeiras o cidadão ficou em pé até mesmo para se ver logo livre da gente. Confirmou que de Sergipe não tinha chegado qualquer pedido de audiência mas, caso a gente quisesse tentar falar com o Governador Brizola podia subir e assistir a gravação do programa semanal que ele mantinha na Rádio Roquete Pinto.
– Está começando agora no salão de reuniões, quem sabe se ele não fala com vocês após a gravação? – jogou a isca e se despediu.
Subimos devidamente equipados. Lula com o tripé e a câmera, eu com meu microfone e Julião com o ‘pau de luz’.
Era provável que seríamos um dos poucos privilegiados espectadores da tal gravação.
Quando aportamos no salão nosso simpático produtor traduziu o pensamento da equipe.
– Cara, é muita gente!
A nossa frente, uma antiga e longa mesa de madeira da época do império. Sentado na extremidade diante de um microfone, o governador já tinha iniciado a gravação. Também acomodados em cadeiras do século passado, de um lado a outro da mesa, fiéis brizolistas, a maioria com lenços vermelhos amarrados ao pescoço, símbolo do brizolismo. Em pé, com indisfarçável ar de adoração, outros cinquenta acompanhavam o que dizia Brizola.
Inimigo ferrenho de Roberto Marinho a quem acusava de estar envolvido no famoso Caso Proconsult, tentativa de fraude nas eleições de 1982 para impossibilitar a sua vitória ao governo do Rio de Janeiro, Leonel Brizola odiava tudo que lembrasse ou fosse vinculado às Organizações Roberto Marinho. Sempre que podia falava mal da Globo. Foi o que aconteceu naquele momento durante a tal gravação radiofônica.
‘Outro dia fiquei sabendo que a reportagem da TV Globo tentou entrar sem autorização no Ciep* de Madureira, um comportamento deselegante, irresponsável, inconcebível… Mesmo avisado pelo diretora que eles lá não podiam entrar, os prepostos do senhor Roberto Marinho, vejam só, forçaram uma situação absurda para criar factóide, confundir a opinião pública com mais uma de suas reportagens mentirosas. Eu já disse aos diretores do Ciesp e agora digo aqui: não entram, não. E aviso mais: se eles não entendem as regras da boa educação, vale a regra do maleducado’. Escutem só: se o pessoal da Globo aparecer no Ciesp e forçar o acesso na força, pau neles pois aquilo não é casa da mãe Joana!’
Ao meu lado, Julião e Lula, tremendamente pálidos, desviaram o olhar de Brizola para mim. Eu não entendia o porquê, mas, de repente, uma sensação de medo e terror tinha ficado estampada no rosto de cada um deles. Meio engasgado, lábios trêmulos, meu produtor se aproximou, conseguindo articular um sussurro débil bem próximo ao meu ouvido:
– O microfone, Euler!
– O quê?
– O mi-cro-fone! – falou meio assoprado, sibilando.
– Que é que tem o microfone, Julião?
– Fala baixo… a porra do seu microfone é da Globo!
Cristo Redentor! Gelei. Eu estava em pé e de braços cruzados dando para perceber fartamente a mão direita que segurava o microfone que ostentava as logomarcas da TV Sergipe de um lado e a da Globo, do outro. Recuei devagar a dita mão que estava sobre o cotovelo esquerdo, direcionando-a a altura do coração e, uma vez lá, procurei a proteção da parte interna do paletó.
Saímos do local um tanto à francesa, naquele andar em câmera lenta que Moe, Larry e Curly, os Três Patetas, exibiam em seus divertidos filmes. Por obra e graça divina os assistentes mal perceberam o nosso ‘vou aqui e volto já’, estavam por demais anestesiados pela incrível – e aquela altura oportuna – adoração ao Governador Brizola.
Retornamos no dia seguinte com um microfone sem qualquer caracterização. Não adiantou, Brizola tinha viajado.
Como diria Julião: que loucura, cara!
*(OBS.: CIEPs: Centros Integrados de Educação Pública, popularmente apelidados de Brizolões, foram um projeto educacional de autoria do antropólogo Darcy Ribeiro que, pessoalmente, o considerava
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