Em Brasília, 19 horas
Meu interesse em escrever para jornal nasceu depois de ler JG de Araújo Jorge, poeta nascido no Acre, um dos mais lidos do Brasil.
A liberdade é o meu clarim de guerra
e eu sou, no meu viver amplo e sem véus,
como os caminhos soltos pela terra,
como os pássaros livres pelos céus.
Na mesma época tornei-me consumista dos versos de Vinícius de Morais.
Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar seus olhos que são doces…
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres exausto…
No entanto a tua presença é qualquer coisa, como a luz e a vida…
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto…
E em minha voz, a tua voz…
Depois de tanto ler, um e outro tão diferentes e tão distintos, abracei versos por encanto à poesia e dela tirei fragmentos importantes que me permitiram construir textos, exaltando o amor pelo tempo do correr da idade, que eu vivia nos idos de minha juventude. Eu tinha plena convicção que desfrutava de uma fase bonita, apaixonadamente verdadeira. Tudo que me ocorria ou navegava pela cabeça, eu insistia ser fruto de dom passageiro e por ter essa certeza nada me impedia de transferir rápido para o papel, com imensa ansiedade, os sentimentos de meus lampejos apaixonados que aos olhos de leitores ocasionais se transformavam em novidade poética. Nada de especial, observado pelo ângulo crítico, mas de importância construtiva para o meu saber intelectual, pois à medida que eu escrevia demonstrava que os passos futuros estavam sendo construídos. O escrever tinha estreitíssima relação com o ler.
Não foram poucas as vezes que por encomenda de colegas ginasianos, tornei-me porta-voz sentimental na tentativa de vencer etapas de amores não correspondidos por culpa de forte resistência no âmbito familiar de amadas ocasionais. Eu construía cartas de amor que seriam assinadas por outros. Nas páginas de meus cadernos eu tentava ser criativo, mas não era nada fácil porque a circunstância pedia inspiração, reclamava poesia, só que às vezes faltava a competência do poeta, ou mais, faltava o poeta temporal. Na ausência do modelo próprio, nada que duas doses de um conhaque barato não estimulassem a criatividade reclamada. Iluminado pelo álcool, eu tinha o caderno como companheiro mais íntimo de minhas confidências sentimentais, assumindo naquele instante uma paixão de encomenda para que na esteira de momentânea inspiração eu pudesse deitar palavras, jogar com os versos, iluminar o amor resistente, abrir portas ou fechá-las em definitivo. Tudo tinha um preço, uma conseqüência que às vezes morria no canto da fatalidade.
Às vezes, em meio ao silêncio profundo da madrugada, um sinal de luz vindo da casa da destinatária, sugerido pelo amado remetente, indicava que ela estava feliz, que a mensagem – lida e relida – tinha causado o impacto desejado. Dois sinais de luz, traduzidos com ‘eu te amo’, soavam também como um ‘boa noite, amor’. Na rua, depois de observar os sinais do amor correspondido, o enamorado tomava o caminho de casa. Com certeza, era o ser mais feliz do planeta.
Eu era um pronto-socorro sentimental.
Tornei-me jornalista nas páginas d’ A Voz de Lagarto, após ler meus poetas favoritos e escrever textos para o consumo restrito a algumas pessoas.
Aos 18 anos, já não lia poesia com a mesma assiduidade de antes. Por dever de ofício, comecei a consumir meu conterrâneo Silvio Romero. Até hoje tenho todos os volumes do dicionário de Laudelino Freire, obra rara, herdada de meu pai. Veio a fase dos escritores nordestinos: Gilberto Freire, Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Condé, Ariano Suassuna, entre outros.
Os caminhos que me levaram a Aracaju foram marcantes e decisivos em minha formação jornalística. Com mínima experiência adquirida em jornal do interior, cheguei à capital no início dos anos 70, os “anos de chumbo”, de muita repressão e forte censura por conta do regime militar instalado no país. Garoto, assumi o cargo de redator-chefe do jornal Tribuna de Aracaju. Na época, o país era presidido por Emílio Garrastazu Médici. Foi difícil me adaptar às visitas quase que diárias de policiais federais à redação do jornal. Geralmente eram dois. Altos, gordos, mal encarados, ternos claros e surrados. Não cumprimentavam ninguém. Sabiam de nossa antipatia por eles. Eram mensageiros de ordens vindas de Brasília ditando qual seria o comportamento da imprensa em relação a algumas notícias que interessavam ao regime.
Sem liberdade de expressão, temi que o foco do meu trabalho fosse desviado, embora continuasse forte a vontade de fazer carreira como jornalista. Os censores sempre presentes na redação podavam sonhos que eu cultivava desde meus tempos de A Voz de Lagarto. Pensei em retornar para o interior, longe das ameaças e dos pesadelos. Mas, eu – como todos de minha geração – tinha ambições, ademais não me sobravam muitas escolhas. Precocemente casado, pai de uma garota, não podia recuar.
1972. Um final de noite, fechada a primeira página, fui comer um cachorro quente numa barraquinha próxima à Gazeta de Sergipe, na Rua da Frente. Fazia parte da rotina de muitos jornalistas. Depois do lanche e alguns minutos de conversa jogada fora com as prostitutas que faziam ponto nas proximidades, retornei ao jornal decidido a encerrar meu expediente. Estava com sono, precisava me recolher. Da oficina, uma voz pediu que eu aguardasse um pouco. Operador de linotipo, Jorge era um desses sujeitos alegres por natureza. Bom caráter e grande sonhador, de tudo fazia graça. Amante platônico de grandes divas do cinema, não perdia a oportunidade para me atualizar sobre seus romances cinematográficos.
– Sabe quem me ligou hoje?
– Alguém importante?
– A Sofia.
– Não diga?! A Sofia?
– Sim, a Sofia, a Sofia Loren! – Confirmava enquanto olhava paras as unhas, sempre bem cuidadas.
– Sortudo!
– Pois é, rapaz. Ligou de Milão. Disse que vem ao Brasil, que precisa me ver.
Ao final, ríamos muito. Mesmo cansado, eu dava asas à imaginação do bom Jorge.
Sabendo que meu destino era dormir, pediu-me que antes de ir embora deixasse algum comentário para a página internacional. Na época, os jornais recebiam regularmente boletins noticiosos de várias embaixadas, inclusive daquelas que não rezavam na cartilha do regime militar. Cansado, passei os olhos sobre a minha mesa, folheei rapidamente um dos boletins, destaquei duas páginas do que imaginava ser da Embaixada Americana, passando de imediato para a impressão. Cumprida a última tarefa rumei para casa. Às 7 horas da manhã, o radialista Santos Santana alardeava na Rádio Cultura que a Tribuna de Aracaju fazia apologia ao comunismo.
Gelei quando soube do acontecido. O artigo que julguei ser de algum articulista americano, para minha desgraça era de um correspondente soviético, ou, mais precisamente, tinha sido distribuído pela Embaixada da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Nitroglicerina pura!
Ao folhear o jornal, lá estava na sexta página em duas colunas de cima até embaixo: Angela Davis visita Leningrado. Cabeleira black power, militante do grupo Panteras Negras, membro do Partido Comunista, e procurada pelo FBI acusada de participar do assassinato de um juiz durante tentativa de libertar George Jackson, prisioneiro da penitenciária de San Quentin, ela deixava evidente no artigo do jornalista soviético que o comunismo estava avançando firme em direção à América Latina. Quatro linhas adiante, uma curta frase contundente.
Moscou está de olho no Brasil!
Tive vontade de pegar o próximo ônibus com destino ao fim do mundo.
Ao chegar ao prédio da Tribuna de Aracaju, senti que se o mundo ainda não tinha acabado, estava prestes a explodir sobre minha cabeça. Não deu outra.
Às 10 e meia da manhã, os federais desceram do velho e conhecido fusca preto, que parecia pequeno para eles. No balcão, ao me apresentar como responsável pelo jornal, fui convidado a comparecer no dia seguinte à sede da Polícia Federal para prestar esclarecimentos sobre a matéria que em poucas horas passou a ser o assunto do dia. Assinada a intimidação, entendi que para eles, no mínimo, eu era um subversivo. Pela primeira vez na vida, eu tive medo do que podia me acontecer.
A sede da Polícia Federal ficava na rua Capela, nas proximidades da Rodoviária Luiz Garcia, no centro comercial. Sem qualquer esforço o olhar do delegado transmitia ódio. Sentado à sua frente eu não consegui dizer absolutamente nada porque entre ameaças e gritos de ‘jornalismo marron’, foram vãs as tentativas de explicar o infortúnio ocorrido após o linotipista Jorge ter me contado sobre Sofia Loren. Conforme eu entendi, para o delegado eu era um elo da Embaixada da URSS em Sergipe. Repetiu várias vezes que estava diante de um subversivo em potencial.
Saí de lá meio sem rumo, indeciso quanto a meu futuro.
Um ano depois já não havia indecisão, meu trabalho seguia na Tribuna de Aracaju embora com a expectativa de ser nomeado para o Banco do Brasil. O regime arbitrário, autoritário e repressivo, nos mantinha sob censura. Por precaução, todos os boletins de embaixadas acabavam na lata do lixo. As restrições passadas pela Polícia Federal nos impediam de publicar dezenas de notícias. Todos os dias a mesma coisa. Até o aniversário de Dom Helder Câmara era proibido divulgar.
Nessa rotina a vida ia andando e muitas tragédias se acumulando. De repente, o colega Otacílio chega à redação com matéria que prometia ser manchete de primeira página, fruto do trabalho investigativo feito nos Correios e Telégrafos. Na manhã seguinte, jornal nas ruas com a manchete que jamais iria sair de minha cabeça: “Corrupção na ECT de Aracaju”. Às dez e meia da manhã, o terrível fusca preto estaciona em frente ao prédio do jornal. Dele descem dois agentes federais trazendo a intimação para que eu comparecesse à sede da Polícia Federal.
Na hora o que me ocorreu foi assustador. De tanto ler e ouvir sobre a prisão de jornalistas, estudantes e operários – sob acusação de serem subversivos, temi pela minha sorte, apesar de não ser comunista, pertencer a qualquer grupo revolucionário ou algo parecido.
Na Polícia Federal fui interrogado pelo mesmo delegado que, um ano antes, tinha demonstrado um ‘carinho especial’ por mim. Eu já sabia que o meu retorno era motivado pela matéria do Otacílio sobre corrupção nos Correios. As provas contra a direção da empresa, irrefutáveis e com depoimentos contundentes, me deixavam com uma certa tranqüilidade. Só que eu desconhecia de outros fatos. Com o jornal nas mãos, o delegado disse tudo o que eu não desejava ouvir e muito mais. Em certo momento, ele deu o golpe mortal: “sabe quem é o cidadão, vítima do jornalismo marron que o senhor faz? Sabe quem é?” Sem aguardar a minha resposta, ele completou: “É meu amigo, joga buraco todas as noite comigo, é homem de bem, decente, honesto, patriota”.
Durante vinte dias, fui obrigado a marcar ponto na sede da Polícia Federal. Sempre à noite. Coincidentemente, quando eu lá chegava, de um bendito rádio eu ouvia: “Em Brasília, dezenove horas. No ar, a Voz do Brasil”. Depois de algum tempo alguém mandava eu subir. No pavimento superior um agente federal me fazia perguntas que no decorrer dos dias se assemelhavam com tantas outras: “Já ouviu falar em Fidel Castro?” – “E Che, sabe quem é Guevara?” ou “Sabe quem é Padre Almeida?” Diante de respostas positivas, eles se entreolhavam – sempre tinha mais de um por perto – “Admite que os conhece? Eu sabia, coisa de subversivo!” Na verdade, era uma tortura psicológica. Por mais que eu justificasse que qualquer cidadão já tinha ouvido falar em Fidel, Che e Padre Almeida – entre tantos outros – os que me interrogavam desviavam o foco da realidade, repetindo em voz alta que ‘isso é coisa de subversivo”.
Os dias foram passando. Aos 20 anos de idade, minha vida estava comprometida por causa da amizade do diretor dos Correios com o delegado da Polícia Federal. Jornalista em início de carreira sem nunca ter militado em movimentos políticos, nenhum registro que me elevasse à categoria de subversivo ou comunista, eu era a imagem do medo. Uma certa noite, ao chegar em casa fiquei olhando minha filha dormindo. Não resisti. Chorei pela incapacidade de reverter a situação. Pela total inexistência do Estado Democrático do Direito, eu não via como me defender. Restava-me orar. Em Deus eu esperava encontrar a saída.
Na noite seguinte, a décima sexta na Polícia Federal, notei que a pessoa que me interrogava não demonstrava arrogância, sequer insistia em perguntas absurdas. Também não falava alto. É como se já tivesse a certeza que o absurdo ali era a minha presença, já que eu não me enquadrava em nada que os seus colegas teimavam em me situar. Em certo momento eu perguntei se ele tinha família, filhos. Respondeu que sim. Falei então do meu desespero, do choro da noite anterior diante de minha filha adormecida, do receio em não tomar posse como funcionário do Banco do Brasil. Ao final do meu depoimento, muito emocionado e com enorme convicção, eu disse que não mais retornaria à Polícia Federal. Braços cruzados, sentado numa poltrona, observando-me atentamente, o agente federal levantou-se, olhou as horas no relógio antigo sobre um armário e falou: “Vá embora. Se o Banco do Brasil nomear você para um outro Estado, publique no jornal uma nota sobre a sua mudança de domicílio para que a gente possa registrar aqui o seu destino. Promete? Respondi que sim, sem muita certeza.
Cinco meses depois, por convocação do Banco do Brasil, fui para o alto sertão do Pajeú, em Pernambuco. Sem aviso ou despedida ao regime.
Antes, exorcizei fantasmas e angústias. A lógica do mal não conseguiu me vencer. Rumei para o meu futuro, fui dar conta do meu destino, viver de um bom emprego, desfrutar do tempo vindouro num lugar de nome bonito – São José do Egito – terra dos melhores cantadores do Brasil, conhecida mundialmente pela sua gente, essencialmente criativa, lírica e engraçada.
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