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O cochilo do Monsenhor Jason

Segunda-feira, calor insuportável no último mês do verão. O tempo estava nublado, com nuvens carregadas e escuras fazendo o meio da tarde parecer início de noite, impressão que só alimentava a vontade de largar tudo, tomar caminho de casa e me acomodar no meu canto. Sentado na primeira fila ao lado de uma das duas portas de acesso daquela que era a maior sala de aula do Ginásio Laudelino Freire, dava para perceber o céu carrancudo e as poucas janelas abertas do Colégio Sílvio Romero, que seguia paralelo bem ao lado, a nos oferecer um cenário sombrio e calado, sem ninguém transitando pelos corredores ou emitindo sinais de que havia vida lá fora. Desconfiado, levantei um pouco o rosto e tentei exalar um possível cheiro de fumaça de cigarro, vindo de um ponto qualquer, carregando sinais de insubordinação, quase sempre cometidos por alunos da quarta série, os mais experientes e exibidos do ginásio. Estranho. Ninguém falava, caminhava ou fumava. Pelo visto, quem resistia às possíveis consequências do tempo permanecia em sala de aula, sentado e obediente, assim como os alunos de terceira série, como eu.

À nossa frente, trajando batina preta que se estendia até os sapatos de verniz preto, crucifixo dourado que combinava com a bela corrente de ouro no pescoço, o Mons. Jason Barbosa Coelho estava sentado em sua mesa de professor sem demonstrar pressa em iniciar a aula. Olhos quase fechados nos dando a certeza de cochilo iminente, ele balbuciava palavras que não chegavam aos nossos ouvidos, os lábios faziam de conta que acompanhavam o ritmo de suas intenções para com Deus, mas não havia sincronia entre o imaginado e o dito. Mãos entrepostas e um pouco trêmulas sobre a barriga, ele rezava com o queixo quase ancorado no peito. Sobre a mesa um missal repousava ao lado da caderneta de chamada, onde eram registradas a frequência e, eventualmente, as notas de cada aluno. Quando o Monsenhor estava assim – entregue de corpo e alma às orações vespertinas – a classe toda entendia que o mais razoável era não tirá-lo daquela letargia meditativa porque era sabido que o velho pároco da Matriz de Nossa Senhora da Piedade não gostava de ser interrompido sob hipótese alguma, a não ser que todos os santos enumerados pelo Vaticano viessem em comitiva arriscar interrompê-lo com um terminativo ‘amém’. Quando contrariado, nosso professor de História Geral explodia sem dó nem piedade, não importando se estava na igreja ou em sala de aula. Então, melhor resguardar-se da ira do santo homem de Deus.

A perspectiva de trovoada com chicotadas de relâmpagos uniu a turma: todos os trinta alunos ficaram lado a lado, sentados e encolhidos, juntos para a hora do deus-nos-acuda! Diante dos olhares assustados, eu arrisquei me levantar e atravessar para o outro lado da sala, em direção a uma das quatro janelas ainda abertas, na tentativa de ver, num plano maior, o que estava por cair sobre as nossas cabeças. Ademais, eu precisava saber se, naquela altura, nós éramos as únicas almas vivas do ginásio. Nessa de saciar a curiosidade e afugentar os meus medos, eu caminhei furtivamente pé ante pé com um olho no padre e o outro na missa, passando como uma sombra em frente ao sonolento Monsenhor Jason.

Quando eu cheguei ao outro lado da sala e apoiei meu queixo na borda de uma das janelas com o olhar fixo no céu assustadoramente negro, tudo aconteceu a um só tempo, com diferença de fração de segundos: o barulho do sino tocado por ‘Seu João’blém- blém- blém… – anunciando precocemente o encerramento da aula – seguido de um relâmpago com clarão incrível abrindo o céu em dois, vindo a reboque o inevitável estrondo aterrorizante do trovão: ‘praquibuuuum!’. Tudo mais ou menos em sete segundos. No oitavo, o grito de Mons. Jason ordenando que os alunos continuassem em seus respectivos lugares.  Não sei ao certo o que o acordou: se o barulhento sino marcador do tempo ou o fortíssimo papoco vindo do céu. Atabalhoado, sem saber exatamente o que estava acontecendo, ele viu-se de pé segurando o belo crucifixo dourado de uso pessoal, como se quisesse proteger do apocalipse que estava às portas do Laudelino Freire. Apavorado, ao me ver atordoado esfregando os olhos e tentando encontrar o caminho de volta, ele se colocou diante de mim esbravejando como nunca.

– Que desgraça de barulho dos infernos foi esse e que matraquear dos diabos o senhor está provocando como se fosse dono do tempo e do destino?

– Mas, eu, Monsenhor!

– Comunista, subversivo!

Desesperado de raiva, e após balançar sucessivas vezes o dedo em direção ao meu rosto, repetindo que eu era comunista e subversivo, ele levantou um pouco a batina, deu meia volta e saiu apressadíssimo em direção à secretaria do ginásio.

Ao colocar os pés fora da sala de aula, uma nova sequência de relâmpagos e de trovões o fez recuar em busca de abrigo, entendendo de vez o que se passava.

Com os olhinhos miúdos agora arregalados, ele estava novamente frente a frente comigo.  

– Quer dizer que não foi você? – disse-me com o dedo apontado para o céu  

– Não, Monsenhor, não fui eu. Foi coisa de Deus, acredite!

No dia seguinte, ao se encontrar comigo no longo corredor do ginásio, segurou meu braço com gesto amigo, demonstrando que não guardava rancor.

– Olhe, eu estive pensando… um garoto de 16 anos, bem educado e de família católica, não pode ser comunista nem subversivo, não é?

– Não, Monsenhor, não pode.

– Ademais, você não tem pretensão de ser Deus! Sei que não!

Dito isso, seguiu adiante, mas não sem antes me abençoar, fazendo com a mão o sinal da cruz em frente ao meu rosto.

 

2 comments

Gi Germano

Estamos pesquisando sobre os padres que passaram pela Paróquia São João Batista (Macaé/RJ) e descobrimos que o Padre Jason passou por aqui também, gostei desta história. Onde posso encontrar mais informações sobre este padre?

Paulo Nogueira Fontes

Caro amigo Euler! Essa é uma boa história sobre o Mons. Jason, que era uma figura e tanto. Lembro-me das missas celebradas por ele, em particular aos domingos às 7 horas da manhã, que meus pais sempre iam e me levavam, naqueles dias quentes de verão do nosso Lagarto, quando Mons. Jason, durante a clebração, aliviava o calor jogando água benta no pescoço. Na verdade eu gostava mesmo era quando o nosso vigário, de volta dos seus passeios à Europa, em particular à Roma, contava onde esteve e o que fez durante a viagem. Como eu sempre gostei de uma boa história, ficava encantado com as narrativas do nosso Mons. Jason.

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