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Os verdes campos de minha terra

Confesso que nutro pela minha terra uma paixão sem limites, ou seria amor considerando que paixão tem prazo de validade? Opto pelo amor sem receio de passar para o leitor uma página de dúvida. Nós, os nativos do interior, somos apegados às nossas raízes, cientes da simplicidade que nos remete para o futuro na mesma proporção que o passado viceja na memória com recordações emotivas que fluem nos contos de quem une palavras à realidade como se tudo tivesse acontecido ontem ao cair da tarde.

Meu amor por Lagarto foi testado quando ‘Seu Nelson do Correio’ decidiu que eu precisava ir adiante nos estudos, exercitar a tendência para o jornalismo. Achei que era uma boa idéia porque já tinha ouvido de alguns velhos e bons amigos relatos sobre mudança de clima para ganhar experiência. Tinha sentido. Se eu pretendia ser jornalista era preciso ousar, testar meus conhecimentos, aprender com quem sabia, ir mais além da Praça da Piedade e da avenida Francisco Garcez que abriga o querido Ginásio (hoje Colégio) Laudelino Freire. Era isso. Aos 17 anos eu tinha a mais absoluta certeza da necessidade de me desgarrar de alguns laços sentimentais tidos como irreversíveis.

Decidi, então. Precisava ganhar o mundo sem perder a alma.

Em Aracaju, meu novo endereço era um pensionato na rua Itaporanga 49, perto da praça da Catedral. Em pouco tempo conquistei novos amigos, um grupo de rapazes e moças que viviam da poesia, do jornalismo, do teatro, da música e de boas noitadas. Era prazeroso, senti que meu futuro estava comprometido com o jornalismo e, se não tivesse cuidado, com uma linda poeta que em busca do curso de doutorado, acabou se fixando na Espanha. Embora entusiasmado com aquele novo momento, percebia que alguma coisa estava fora de ordem, só que meu tempo era ocupado demais: o estudo, as idas diárias às redações de jornais em busca de aprendizado, as reuniões noturnas com a minha nova turma – encontros que sempre acabavam quando a madrugada começava a sorrir.

Confesso que era demais para quem até dias antes só tinha compromisso com o Laudelino Freire, os namoricos nas matinês do Cine Glória e os bate-papos na praça da Matriz com os amigos de infância Eraldo, Emanuel, Joaquim, Toinho de Nozinho, Valbério e mais alguns.

Um dia, o lagartense José Ribeiro de Oliveira – boa conversa, leal companheiro, colega de ginásio também estudando na capital – surge no pensionato trazendo a tiracolo uma eletrola portátil da Phillips. Foi chegando e fazendo o convite:

– Magro, vamos ouvir música lá na praça da Catedral?

Era final de tarde de um outono preguiçoso. No chão da praça, folhas encolhidas e muitos frutos maduros de dezenas de tamarindeiros davam o tom de uma solidão que nos dominava naquele instante. Sentado em frente à estátua do Monsenhor Olímpio Campos, fiquei olhando o amigo lidar com o aparelho. Semblante preocupado, ele cuidadosamente instalou as pilhas na eletrola, estirou o fio da única caixa de som, escolheu o disco, sentou com olhar perdido na Catedral e acendeu um cigarro, não antes de dizer num tom de lamento com a nítida intenção de me prevenir:
– Aguenta, magro!

Era a gota que faltava. Da frágil Phillips portátil surgiu a voz forte de Agnaldo Timóteo cantando Os Verdes Campos de minha Terra

Se algum dia a minha terra eu voltar
Quero encontrar as mesmas coisas que deixei…

De repente, nos vimos chorando. Tudo, exatamente tudo lembrava Lagarto. As paqueras na praça da Matriz, o relacionamento saudável do ambiente escolar no Laudelino Freire, os bailes na Atlética e a Rolleiflex de Maninho de Zilá imortalizando nossas poses, fotografias que, até hoje, estão guardadas como lembranças de momentos inesquecíveis.

Viajamos no tempo. Eu e Zé Ribeiro ali na praça chorando com saudades de Lagarto, tendo Monsenhor Olímpio Campos como testemunha solitária e Timóteo com a sua música despertando o nosso imenso amor por um lugar realmente especial.

Quando o trem parar na estação
Eu sentirei no coração a alegria de chegar
De rever a terra em que nasci
E correr como em criança
Nos verdes campos do lugar.

Há mais de 30 anos moro em Aracaju. Até hoje, todos os dias, ao cair da tarde fecho os olhos e me transporto para Lagarto. No cruzamento das ruas da Glória com Lupicínio Barros revejo minha gente, me reencontro com minha cidade. Com um pouco de esforço, no exato momento em que de algum canto me chegam os acordes da Ave-Maria, ainda percebo bem nítida a imagem de Nelson Ferreira fechando a porta central da agência dos Correios…

É um momento só meu e da terra que me viu nascer.

Impossível não achar que Lagarto ‘é o melhor lugar do mundo’.

“O valor das coisas não está no tempo em que elas
duram, mas na intensidade com que acontecem.
Por isso existem momentos inesquecíveis,
coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis.”

(Fernando Pessoa)

3 comments

Francisco Silva Souza

Ser lagartense é um privilégio de quem passou por essa terra tão maravilhosa, que tantos sonhos ajudou a realizar, principalmente na época em que éramos como uma só familia. Reunir-se na praça para asistir ao desfile das meninas em noites de novena; os bailes na AAL; o esforço e interesse de cada um em estudar seriamente para os concursos; a relação sincera de amizade, destituida de rancores, inveja ou ciúme. Éramos todos irmãos, procurando ajudar a aqueles que necessitassem de apoio. Não havia droga, nem violencia. Podia-se ainda ouvir serenatas nas noites escuras, quando não havia ainda a energia de Paulo Afonso. Sentar num branco da Praça Filomeno Hora para escutar as músicas transmitidas pela Radiofon, à tardinha ou à noite. Sentir o anseio de desfilar com garbo no dia 7 de setembro, ostentando o uniforme do Laudelino Freire. Quem não se lembras das matinées de calouros no Cine Pérola, dirigido e apresentado por nosso amigo Euler Ferreira? – Tudo era motivo de alegria e de amizade, fenomeno tão elogiado por Mons. Jason. Sinto muita saudade dos amigos daquela época, muitos do quais já se foram como Erval Moura, Mineirinho, Maninho de Zilá (que tanto me encentivou na pratica da fotografia). Como esquecer das missas aos domingos, às 7h00 da manhã, justamente quando nos reuniamos na porta da igreja matriz, para comentar a noite anterior ou combinar o passeio para logo mais, ao Rio Piauí? São doces lembranças que passam como um filme que não tem fim. Que Deus abençoe essa terra de um povo ordeiro, trabalhador e fraternal!
A todos os lagartenses, o meu abraço!
Aracaju (SE), 4 de novembro de 2011.
Chico de Antonio do Café

Edson Ferreira

Parabéns, mano! Você foi bem poético ao citar Fernando Pessoa no final de sua crônica. Continue assim para deleite de muitas Anna Meire do Alem-Tejo.

Anna Meire Correia

Nossa, fiquei com os olhos cheios de lágrimas ao ler esse relato, realmente muito sincero e singelo. É assim que muitas vezes me sinto aqui do outro lado do oceano, na terra de Fernando Pessoa. É pena que não tenho aqui nenhum conterrâneo para dividir a saudade dessa terra que me viu nascer e crescer; a linda Lagarto. Parabenizo a inciativa desse memorial, aqui lendo as crônicas, vendo as fotos, lembrando de nomes que eu cresci ouvindo, sinto-me cada vez mais lagartense e são muitas as vezes que transporto meu pensamento às ruas de Lagarto e às doces lembranças da minha infância. Obrigada por proporcionarem a uma lagartense distante o privilégio de ler coisas tão valiosas. Um dia quero ver tudo isso publicado num livro que eu vou trazer de presente para os meus amigos portugueses.

Anna Meire

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