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Pecado da Carne

Menino, por volta dos 8 anos, tinha duas coisas que eu detestava: tomar banho frio e cumprir um ritual que se repetia uma vez a cada mês, na ‘tenda de João de Amélia’. Quando minha mãe me lembrava que meus cabelos estavam grandes, a alegria ia embora, perdia brilho, eu ficava mau-humorado porque já sabia de antemão que ‘Seu João’ ainda não tinha afiado a máquina número um, com a qual ele cumpria seu ofício na minha cabeça, que se retraía diante das inúmeras vezes que os cabelos eram beliscados por conta das lâminas cegas. Na discreta ‘tenda de barbeiro’, sentado diante do espelho, eu ficava arengando, empurrando o ombro de encontro à orelha em sinal de dor ou impaciência, enquanto com a máquina na mão o ‘meu carrasco’ ria bondosamente, com a promessa que da próxima vez eu não teria motivos para reclamação. Sabia que ele mentia, mas fazer o quê? A ordem do meu pai era freqüentar a tenda de João de Amélia, a dez metros da porta dos fundos de minha casa, pelo lado da Rua da Glória, a mais movimentada do Lagarto.

Tranqüilo, boa prosa, ‘Seu João’ era o típico cidadão pacato, marido de ‘Dona Pratinha’ e pai de Joaquim, flamenguista como eu, apreciador do jogo de botões. Na época, os melhores atletas dos nossos times vinham das capas coloniais – uns botões grandes e robustos – e do coco, que cedia a matéria-prima para que meu pai fabricasse temidos craques. Filho único, Joaquim, amigo de infância, sempre me recebia em seu lar, pequeno e bem arrumado. Quando eu lá estava, meus olhos ficavam fixos na cozinha, para mim lugar estratégico da casa, visível desde o quarto do amigo, ou da sala de jantar. Era quase uma obsessão. É que certa feita eu tinha comido um pedaço de carne assada preparada por Dona Pratinha, um manjar dos deuses. Fiquei fascinado pelo sabor. Acontece que não surgiu uma nova oportunidade para que eu apreciasse o meu prato predileto na casa do Joaquim, ninguém me convidava nem eu me oferecia. Justamente por isso, meus olhos ficavam sempre monitorando a cozinha da casa do amigo. É que justamente na cozinha, um cordão estirado de um ponto a outro mantinha no alto, generosos pedaços de carne, ali secando, maturando, pegando sabor, entrando no ponto até cair na frigideira ou, melhor que isso, ser assada no fogão a lenha, na chapa quente. Doía o dente só de pensar na carne preparada por Dona Pratinha!

Mas, pensar não enchia barriga.

Eu precisava comer novamente um pedaço – um pedacinho, que fosse – daquela carne, ali permanentemente estirada diante dos meus olhos, me desafiando à distância, quieta nas alturas, deixando fugir de suas entranhas um cheirinho gostoso. A dez metros, eu sentia cada detalhe do tempero e da quantidade do sal usado conforme o gosto de quem ia saborear aquela delícia. Era grande a inveja que tinha dos pais do Joaquim e dele próprio. Eu, sempre ali, às vezes assistindo por horas o amigo fazer o dever de casa, interessado apenas em monitorar a doce visão da carne pendurada na cozinha.

Era ela olhando para mim, e eu olhando para ela. Eu a comia com os olhos! Diante das circunstâncias, resolvi agir, arquitetar um plano que me levasse até a cozinha da casa do amigo uma única vez, o suficiente para saciar aquele desejo danado que tanto me angustiava.

O projeto carne na boca não saía de minha cabeça, passei noites imaginando como cometer o crime sem deixar rastros. Faltava criar coragem, morria de medo de ser flagrado quando estivesse literalmente com a mão no objeto do meu desejo. Certa madrugada, acordei esbaforido, todo suado. Tinha acabado de ter um pesadelo: Dona Pratinha, vassoura na mão, correndo atrás de mim, gritando que eu ia pro inferno quando morresse! Rezei, jurando que ia esquecer da carne.

Quando acordei estava resolvido a cometer o crime.

Marquei para um momento em que Joaquim não estivesse em casa, nem ele nem a mãe. Três horas da tarde, fiquei de plantão no portão, nervoso, roendo as unhas. Do lado esquerdo, o consultório dentário do Dr. João Rocha, à direita um pequeno depósito da loja de Dona Sinhazinha. Tudo absolutamente calmo. Do outro lado da rua, a ‘tenda do Seu João’, onde meus cabelos eram cortados. Satisfeito, vi o amigo saindo, ganhando a rua em direção ao centro; em seguida, foi a vez da mãe; sobrou o pai, tranqüilo como sempre, ali na lide, fazendo a barba de um cliente enquanto jogava conversa fora.

Ah, minha boca se encheu de água, estava na hora de atacar. Atravessei a rua, botei a cabeça na porta da tenda já com uma pergunta ensaiada, na ponta da língua:

– “Seu João, e Joaquim?”
– “Tá não, acabou de sair”.
– “Posso esperar um pouco?”.
– “Poder, pode, só não sei se ele cá volta logo”.

Já sentia o cheiro da carne na boca:

– “Então, eu espero um pouquinho”.
– Ôxe, cê é de casa, menino.

Aquilo soou como uma música.

Em três segundos eu estava na sala, cheguei sorrateiramente, desconfiado. De repente, lembrei-me do pesadelo e dos gritos de Dona Pratinha: “você vai pro inferno quando morrer”! Pensei em desistir, mas aí eu já tinha a visão da cozinha. A baba escorreu pelo queixo. Olhei para o local onde o crime seria consumado. Meio agachado, mãos nos joelhos, os olhinhos bem abertos, eu continuava no mesmo lugar curtindo o raro momento. Faceira, elegante, confortavelmente instalada no fio do barbante que cortava os ares da cozinha, lá estava ela, o objeto do meu desejo. Gostosa, não poderia ser diferente, ela permanecia intacta. Agora, éramos apenas nós dois. Eu, com aquele desejo insaciável, e ela deixando nítido um jeito desafiador, talvez pela minha audácia de ousar se aproximar dela em momento tão intimista. À distância, ‘Seu João’ falava do sítio no povoado Horta. Normal, tudo estava sob controle. Agachado, ainda com as mãos nos joelhos, eu estava junto à mesa das refeições, exatos três metros de distância do fogão, do barbante, e dela. Passei o dorso da mão direita na boca, sabia o que me esperava. Aquela sensação do inferno retornou, respiração ofegante, agora temia que o pestinha do Joaquim retornasse antes que eu cometesse meu ato insano. Pronto. Frente a frente ao barbante. Ela permanecia lá, a uns dois palmos de minha cabeça, de tão sequinha nem precisava ser assada, estava no ponto. Trêmulo, levantei os dois braços. Com as duas mãos consegui rasgar um generoso pedaço que veio em direção à boca. Antes que lá chegasse…

-Não é melhor colocar na chapa para assar?

Era Dona Pratinha. Ela tinha acompanhado os últimos lances de minha aventura.

Quase morri de vergonha. Correndo, atravessei a rua, entrei em casa a caminho do meu quarto onde fiquei bom tempo escondido com minhas culpas, lambendo os dedos. Passei um mês longe da casa de Joaquim. Só retornei forçado, levado pelo meu pai, emburrado porque ele não acreditou na minha conversa de que a máquina número um puxava meus cabelos.

Até hoje, quando como uma boa carne assada na brasa, lembro-me do inferno de ‘Dona Pratinha’ e das gozações de Joaquim.

1 comentário

Rosalgina Liborio

Boa tarde, amigo Euler. Hoje, domingo chuvoso, minha irmã Renildes fez alguns comentários elogiosos às suas crônicas sobre Lagarto. Não resisti e comecei pela crônica que descreve deliciosamente o “pecado mortal” de furto de carne assada (furto cometido por você) na casa de João de Amélia e D. Pratinha. Olhe, eu sorri tanto, tanto, que não aguentava ler para ninguém. Como conheci e conheço os personagens, os lugares, a tenda de João de Amélia, a cara de Joaquim ainda menino, adorei. Não perco mais. Parabéns. Voce é realmente muito talentoso. E eu me orgulho, pois nossos pais foram tão amigos, que, em consequência, nos queremos muito bem.
Um abraço,
Rosalgina

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