Pequenos deslizes
Quando criança, em Lagarto, lá por volta dos meus sete anos de idade, fui aluno da escola Santo Antônio, a cem metros de minha casa, na Coronel Souza Freire. Era escola de uma só professora, dona Hulda, parente de Jenner Augusto, um dos maiores artistas plásticos brasileiros. Jenner passou grande parte de sua infância mudando pelas cidades do interior de Sergipe. Humilde, trabalhou como engraxate, sapateiro, ajudante de alfaiate, pintor de paredes, até começar a fazer cartazes para filmes em exibição no Cine Santo Antonio, em Lagarto. Tive a oportunidade de entrevistá-lo nos anos oitenta, no Hotel Pálace de Aracaju, durante uma de suas visitas a Sergipe ao lado da esposa.
Mas, eu me reportava à dona Hulda, professora paciente quando os alunos mereciam e um tanto irritadiça aos primeiros sinais das más criações dos pestinhas que frequentemente faziam jus aos puxões de orelha promovidos pela frágil mãozinha direita da querida mestre. Caso a memória não me deixe em falta com o leitor, eu nunca estive entre os selecionados para os castigos previstos no código moral da inesquecível e bem conceituada escolinha. Mas, nem por isso eu deixei de derramar minhas lágrimas por conta de alguns cascudos ou petelecos nas orelhas recebidos de colegas mais fortes que eu. Aliás, por dever de justiça, fica aqui devidamente anotado que entre os magros, eu era o mais raquítico de todos. Provocado, eu tinha uma baita vontade de reagir, partir para a briga, mostrar que não era tão fraco assim. Mas, era. Então, só me restava chorar a cada peteleco ou cascudo. Mais pelo orgulho ferido do que pela dor.
Certa manhã, tentado pelas guloseimas que a professora fazia e mantinha na cozinha, eu resolvi ceder às tentações que papai do céu condenava, segundo tinha aprendido durante as sessões do catecismo dominical na Igreja do Rosário. Autorizado por dona Hulda, peguei a pedra – passaporte de ida e volta à casinha (privada) – e segui adiante. Naquele horário matinal, movimento mesmo só lá na frente, na sala de aula. Na cozinha, diante do tabuleiro repleto de pirulitos, eu dei um sorriso nervoso de felicidade. Um pirulito, apenas um, tudo que eu queria. Rápido, saquei um entre vários outros reluzentes, dourados, deliciosos. Desprezando a minha ida ao banheiro, guardei a iguaria no bolso e retornei ao convívio dos colegas.
De repente, a voz de dona Hulda firme e forte:
Euler, já para o quadro!
Levantei-me e fui adiante transportando um incômodo tremor nas pernas por conta do pecado cometido e de uma timidez que, por incrível que pareça, me acompanha até hoje. Rápida olhada em direção ao quadro negro foi o suficiente para perceber algumas contas de somar a serem resolvidas. Fácil, tolice. Nem sei por que estava nervoso. Comecei a cumprir o desafio de solucionar as questões de aritmética. Quando julguei que aquele era o meu dia de sorte, eis que de repente, o giz escapa da mão em direção ao chão. Ao me agachar para apanhá-lo ocorreu o inesperado, despertando risos e gritaria da molecada que estava na retaguarda. O pirulito – enfiado no palito – tinha escorregado do bolso raso, ficando visivelmente a amostra, colado no lado de fora da calça. Isso mesmo, coladinho. Pronto, lá estava eu desmoralizado: rosto vermelho de vergonha, caminhei coisa de uns três metros em direção da professora, que naquele momento me dispensou por baixo dos óculos de grau forte um olhar que não deixava a menor dúvida do tamanho da reprovação.
– Seu Euler, onde comprou esse pirulito fujão? – perguntou mansamente com um tom que anos mais tarde, eu identificaria como sendo irônico.
Ciente de que o quadro não me era favorável, respirei fundo e desandei a falar:
-Aqui mesmo, professora. Sabe, quando eu voltava da casinha ele tava lá assim, meio querendo cair do tabuleiro. Aí, eu preocupado, sabendo que podia fazer alguma coisa pra ele não melar no chão sujo, resolvi pegar e trazer pra senhora, inclusive querendo saber se eu podia ficar com ele, é que sempre tive vontade de chupar um pirulito lá em casa depois do almoço e quando fosse amanhã eu pegava o dinheiro com meu pai e pagava à senhora. Pode ser, professora, pode?
Ela olhou para mim, agora com um leve sorriso em seu rosto de mãe compreensiva:
-Claro, pode, pode sim, meu filho, e nem precisa pagar!
Ufa, que alívio!
Dezessete anos depois, já casado e pai de uma garota, funcionário do Banco do Brasil trabalhando na capital, recém-transferido de Lagarto, fui informado que viajaria a Salvador chefiando a transferência de muito dinheiro, o excesso que havia na tesouraria existente na Agência Centro do BB-Aracaju. Comigo, devidamente escalado para me acompanhar na missão, seguiria o querido colega Antonio Vilela de Melo, autor de “Atalaia”, música que até hoje é tida por muitos como o hino de Aracaju. Ele, no fulgor de seus 70 anos, era jovial o dia inteiro, graças à sua alegria contagiante. Uma dessas figuras em extinção que deixam saudades. Quando cheguei a Aracaju para trabalhar no banco, ele foi o primeiro funcionário a manter diálogo comigo. Chegou depressa, sorrindo e cantando como se me conhecesse há muito tempo. Aliás, é essa impressão que carrego até hoje. Com ele, a mando do banco, eu viajaria em missão especial.
Viria a ser a minha primeira viagem de avião. Na pista do aeroporto de Aracaju, eu e ele acompanhamos de perto toda a operação do carro-forte, encarregado de transportar o numerário até a aeronave. Juntos, conferimos se todos os oito enormes malotes entupidos de dinheiro estavam ali, conforme nos foram entregues pelo chefe da tesouraria, ainda na agência. Uma vez cumprida essa etapa inicial da operação, entramos no avião da Varig. Tudo para mim, além da enorme responsabilidade, era extremamente novo e emocionante. Já acomodado no assento, comecei a curtir aquele momento. Sentado, observando tudo e a todos, notei que três poltronas adiante o meu companheiro de viagem mantinha diálogo amistoso com um casal. A distância deu para ouvir ele dizendo que era compositor de músicas de sucesso como “Mocambo de Palha” e “Atalaia”. Diante de platéia especial, Vilela foi adiante cantando a música símbolo de Aracaju (Atalaia*, cuja letra reproduzo em homenagem ao amigo):
Quem te vê, nunca te esquece
vive sempre a sonhar
teus encantos são coisas raras
onde o poeta vai se inspirar
Atalaia, sob o céu azul,
linda praia de Aracaju
Em dias de sol, deitadas na areia
banhadas pelo mar
As lindas pequenas
de pele morena
nos fazem sonhar
E o sol, parece dizer,
queimando-as com seu calor…
Atalaia,
praia do amor.
Aplaudido até por uma comissária de bordo, ele retornou para sentar ao meu lado, sorridente, feliz da vida.
Dez minutos após, avião a cinco mil metros de altura, senti vontade de ir ao toalete. Uma vez aliviado, ao lavar as mãos descobri que um tubo metálico ao lado da torneira fornecia sabonete. Bastava pressionar determinado ponto e… caía um sabonete com a marca Varig. Pressionei uma segunda vez… outro sabonete. Não parei mais, até acabar o estoque. Coloquei dez em um bolso da calça e outra boa quantidade no outro bolso. Uma vez arrumados, ajeitei-me, abri a porta e comecei o caminho de volta à minha poltrona que ficava a uns vinte metros corredor adiante. No quarto passo, um passageiro me alertou:
-Oi, tem sabonete caindo do bolso!
Deus meu, que vergonha! Sentindo que estava sendo observado por muitos olhos, não me restou alternativa senão a de recolher os dois sabonetes que caíram no piso do avião. Quando me agachei para a missão resgate, outros tantos seguiram o caminho dos primeiros. Risos e mais risos e eu ali acocorado sem força para retomar altivamente o doloroso trajeto até a poltrona. Como miséria pouca é besteira, veio a me socorrer uma linda comissária de bordo trazendo na mão um desses saquinhos plásticos utilizados para vômito dos passageiros que enjoam durante a viagem.
Ao me reconduzir ao meu lugar, ela fez questão de devolver os sabonetes, agora dentro do saquinho, não sem antes dizer: a Varig espera revê-lo em sua próxima viagem!
Na capital baiana, enquanto os passageiros desembarcavam, eu permaneci empacado no meu lugar, mirando um ponto qualquer do aeroporto com o olhar desfocado por culpa de um sentimento de pura vergonha. Como era meu fim de linha e chefiava uma missão especial, depois de alguns minutos, resolvi me levantar porque o dever me chamava para fora da aeronave. Quando enfim me levantei, deu para ver a distância o comandante e duas comissárias de bordo cumprimentando os passageiros que tinham Salvador como destino. Lá fomos nós: eu na frente, Vilela atrás – rindo, cantando, cumprimentando a todos como se todos fossem velhos conhecidos.
Mas, naquele momento, eu era o alvo de suas brincadeiras: “esse é o menino mais limpo de Sergipe” – ria apontando para o saco plástico cheio de sabonetes. Quando chegou a minha vez de por os pés na escada, o comandante também não perdeu a oportunidade de demonstrar seu apurado bom humor: “tenha um bom dia. Em seu próximo vôo, com certeza, vamos garantir um melhor acondicionamento dos sabonetes.”
Ao lado das comissárias, recorrendo ao melhor de sua bela música Atalaia, Vilela se despediu cantando:
As lindas pequenas
de pele morena
nos fazem sonhar
Meu bom humor retornou justo naquele momento. Grande Vilela!
* Lei Municipal de nº 1351 de 05 de abril de 1988 tornou oficial a canção intitulada “ATALAIA”, com letra e música do Compositor Sergipano Antonio Vilela de Melo, como “Canção da Cidade de Aracaju”. Na época, o prefeito da capital era Jackson Barreto de Lima.
Publicar comentário