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Lembranças

Há alguns meses, li a crônica do meu amigo Euler Ferreira, intitulada “O DESEJO DA CARNE”. Confesso que o seu conteúdo aguçou-me a saudade, de modo que fui instado a mexer nos labirintos da memória e daí, sacudindo as traças, transportei-me ao início da década de sessenta, até os seus meados. Quero dizer que não são lembranças plangentes, mas sim, um misto de alegria e saudade. Esta mescla está longe de ser um paradoxo, porém, um agradável regresso ao glamour de uma época.

Aqui deixo de lado a carne moqueada feita por Dona Pratinha e a traquinice de “Ninho”, – era o apelido de Euler para os íntimos – para, daqueles idos, recordar os fins de tarde na Praça Filomeno Hora, principalmente após as aulas do Laudelino Freire, tendo antes passado pela esfrega da famosa aula de inglês de Luis Araújo, professor notável, davam-lhe a alcunha de “Frei Papinha”, por conta de um personagem do filme Marcelino Pão e Vinho. Graças a Deus, seu Luis ainda vive, culto e amante da música clássica, tem um programa sobre a matéria na rádio Aperipé AM, patrocinado pela SOFISE.

A propósito, ao me referir ao Laudelino, enfatizo a farda cáqui, especialmente o blusão pesado, cujos botões pretos não podiam ser desabotoados, bastava apenas um, e a suspensão viria de forma implacável. Se no colégio éramos obrigados a suportar o intenso calor que o maldito blusão nos causava, por nosso risco, na praça, ousávamos abri-los totalmente e, de peito livre, podíamos receber a doce brisa do entardecer. Outro ingrediente que tornava a praça mais atraente era o som da Radiofon. Com seus boleros famosos, suas baladas românticas apimentavam paixões.

Neste meu vagar, não posso, de forma nenhuma, me esquecer do glamour do Cine e Teatro Glória, destruído pela avidez do progresso para dar lugar a um estacionamento. Certa feita, assistindo ao filme “Cinema Paradiso”, transportei-me ao Cine Glória, ao barulho infernal das segundas-feiras, capitaneado pelos assobios dos filhos de Terreno. Com seus chapéus de abas largas, só permitiam vermos a fita pela metade. Baforando os seus cigarros de fumo de corda, na emoção do filme, despencavam seus impropérios: “Mata esse fio do cabrunco, beije essa gostosa”.

O melhor mesmo do Cine Glória eram os seriados, cujos heróis findavam, a cada capítulo, em uma situação de perigo. Quantos filmes épicos não arrancaram aplausos, lágrimas, pânico, paixão, pena não poder nominá-los devidamente.

O Cine Glória não era somente filmes, grandes astros pisaram no seu palco. Até um filme paraguaio foi exibido, Cobiça era o seu nome, inclusive com a presença da atriz principal, Sarita Montez, só que, no filme, era ela belíssima; ao vivo, uma criatura extremamente disforme, completamente diferente, coisas do Paraguai.

Na minha visão de menino, o Cine Glória era revestido de suntuosidade. Suas cortinas de veludo cor de vinho se abriam paulatinamente ao som de Moonlight Serenade, enquanto isso, as luminárias de alvenarias, em formas de conchas triangulares, deixavam escapar, do seu interior, luzes de cores diversas que se sucediam ao compasso de um efeito sonoro. As luminárias eram presas sobre as paredes laterais.

Ainda na década de sessenta, pudemos testemunhar o Cine Pérola, belíssimo, requintado, trazia em seu interior afrescos com figuras egípcias. Eram frutos da genialidade de Edson Ferreira, lagartense ilustre. Eu o reputo como um dos maiores pintores da nossa terra.

A grande marca do Pérola foram os programas de calouros, tão em moda, inspirados nas músicas da Jovem Guarda. Como o Cine Glória, o Pérola não resistiu à crise dos cinemas, foi tragado, igualmente, pela voracidade do progresso.

Óbvio que as recordações aqui anunciadas não estão restritas à praça, ou mesmo aos cinemas, mas, é claro, avançam também até figuras humanas, que, por suas características, poderiam enriquecer qualquer obra literária.

Olímpio Vieira, por exemplo: um misto de escultor, químico, bodegueiro e dentista. Quem não se recorda da sua famosa gengibirra? Composição química cujo legado levou ao túmulo.

Ao me deparar com a fotografia do anarquista italiano Nicola Sacco, vi-me diante de Olímpio Vieira, diferenciado apenas pelo abastado bigode de Sacco e pelos finos aros dos seus óculos.

Como era gratificante contemplar a habilidade de seu Olímpio ao esculpir seus pequenos bonecos de madeira. Feições diferentes, poses variadas que ganhariam vida no seu presépio. Ali, suas obras se misturavam às imagens dos reis magos, aos pôsteres das artistas do rádio, contando-se ainda com a pequena roda gigante, cheia de bonequinhas de plástico. O curioso era o pequeno trem rodando incansavelmente pelos trilhos que davam a lugar nenhum.

Ludugero, impecável no seu trajar, guarda-chuva preso ao braço, pelas ruas, saía a anunciar as horas. Filomena e Cecília Machado, irmãs, professoras, donzelas juramentadas, partiam os óculos ao meio, e cada uma com a sua lente, cuidava em movimentá-la para perto e para longe, de modo a enxergar melhor as letras miúdas da “Cartilha do Povo”.

No campo da música, o fato maior da década de sessenta foi o surgimento de “Los Guaranys”: Foguinho, Bosco, Queimadinho, Osman, Cabeleira, Alexandre, seu irmão Tonho e Wilson foram, em princípio, seus principais componentes. Claro que não se pode esquecer da presença do inigualável Caubí, no ofício de empresário.

Sigo esta viagem passando pela nossa querida Associação Atlética de Lagarto, quantos bailes extraordinários, quantas orquestras famosas, só para citar algumas: Românticos de Cuba, Marimba Alma Latina, Copacabana Boys – pasmem, Agnaldo Timóteo era o seu crooner –.

A Associação Atlética de Lagarto, hoje agoniza como um moribundo abandonado. Nesse seu definhar, carrega um pedaço da vida social de Lagarto.

Bem, para não me alongar, completo esta viagem dizendo que tudo o que falamos são retalhos de um passado que não volta mais, porém, consola-me saber que nos porões da minha memória, eles estão guardados, e quando vêm à tona transformam-se em SAUDADES.

7 comments

Luiz Fernandes do Nascimento

Olá, Joaquim! Só estou lendo a sua crônica hoje e sinto como se o tempo voltasse com nitidez, apesar dos meus 67 anos e dos 50 que fui embora para o Rio de Janeiro.
Quando assisti ao filme Cinema Paradiso, eu me debulhei em lágrimas, pois para mim era como se fosse o Cine Gloria… Tenho muitas lembranças da minha Lagarto daquele tempo.
Como morei até os 6 anos no Limoeiro, o que me toca mais era quando, após o período de seca, vinham as trovoadas e os caminhos ficavam cheios de água e, principalmente, o cheiro que exalava da terra molhada. Eu era feliz e não sabia.

Marco Polo do Nascimento

Fico feliz ao lembrar essa época, graças a você, Joaquim, pois também morei em Lagarto (que continua em meu coração) e vivi esses momentos.

Abraços do amigo,
Polo

Iracema Costa Santos

Ah, Joaquim, como fico feliz e saudosa de tantas lembranças. Como está me fazendo bem ler seus textos, que me reportam para uma epoca tão feliz. Apesar de ter saído de Lagarto em 1960, todo Natal, São Joaõ, Sete de setembro, papai fazia questão de vir para Lagarto. Assim, nunca perdemos nossas raízes, nem o sotaque de sergipana (como dizem meus amigos). Então, tudo que você narra, a exemplo de fatos e personagens, são familiares. Continue escrevendo, que está formando um fã clube.
Abraços, Iracema de Dozinho

José Evilázio Vieira

Quero agradecer por esse momento de recordação da nossa infância, que estão guardados em nossa memória. Esse tempo é como uma magia que nos transporta para as mesmas saudades de um período ingênuo e impar. Parabéns pela iniciativa.
Evilazio Vieira

Eviselma Fonseca Vieira

Ao relembrar os feitos realizados pelo meu avô, Sr. Olimpio Vieira, deparei-me com uma pergunta instantânea:

Rivaldo Fonseca

Quero, nesse momento, usar do meu singelo conhecimento, para agradecer ao querido Joaquim Prata, pelas lembranças tão agradáveis que ele acaba de me proporcionar. Obrigado, Joaquim, por você existir e ter uma memória tão fértil. Que o Senhor Jesus esteja sempre presente em sua vida, e que você continue escrevendo textos como esse. Parabéns!

Vauberio Oliveira Cezar

Suas narrativas são deveras impressionantes, contadas com a maestria dos grandes escritores, contistas, narradores e outros. Continue a escrever, e lembre-se: não se esqueça de relatar as peripécias acontecidas no roubo das melancias, no sítio do finado Zeca da Jibóia, ok?

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