Carregando agora

O incêndio

Era mês de maio. O ano, 1957. Fazia frio naquela tarde noite. O Lagarto começava a escurecer. Na fábrica de bebidas Oriente, Zé Preá mudava a genebra de uma dorna para outra. O Salão escuro reclamava a claridade. Zé Preá acendeu um fifó que logo veio a despencar de um velho engradado, precipitando-se sobre o chão umedecido pelo álcool. Foi o bastante para que o fogo se proliferasse fábrica adentro. Em vão foram os esforços para contê-lo. Àquela hora ninguém havia percebido que algo extraordinário iria acontecer.

Na Rua da Glória, como de sempre, amontoavam-se algumas pessoas, principalmente na barbearia de João de Amélia. Na bodega de seu Almeidinha, Seu Euclides, marido de Dona Uda, reclamava do inverno. Os viajantes de Garanhuns jogavam dama na porta do Hotel São Jorge. Na bodega de seu Sérgio, Gracito pigarreava e tossia seco, tomando assento no velho caixão de velas, ali posto propositadamente para ele, pois seu resguardo não lhe permitia subir batentes. Cisma da idade.

Um grito quebrou o silêncio e se espalhou pela Rua da Glória: – “A fábrica do Seu Nozinho tá pegando fogo e vai pegar na bomba de gasolina de Dona Sinhazinha!”.

A notícia correu de casa em casa. O Lagarto estava prestes a ser destruído. Lá estava a velha bomba de gasolina, movida à manivela, à espera do momento fatal. Àquela hora, o sol já despencava atrás da Serra do Crioulo, ruborizando-se e pintando a tarde de um tom avermelhado. O rebuliço tomava conta da cidade espalhando-se pelas ruas da Glória, Simão Dias, Praça da Piedade, onde na casa dos Monteiros, o pão com leite foi suspenso e o café deixado pela metade.

O Lagarto era pequeno, um tico de Cidade. Começava pelo Alto da Gata findando nas bordas da Catita. No avalio de muitos, com o incêndio e a explosão da bomba de gasolina, tudo iria pelos ares.

A letargia do dia foi substituída pelo alvoroço das pessoas que, apressadas, se dirigiam para as bandas do Pacheco, Campo da Vila, outras para a Bica. Quanto mais longe fossem, melhor seria. Magotes de crianças, mulheres, idosos e jovens deixavam a cidade, fazendo lembrar a retirada funesta das populações européias, quando subjugadas a ocupação nazista.

Na confusão, orações e súplicas. Pelo lado da Bica, algumas pessoas rezavam a ladainha: – “Santa Maria” – a resposta imediata: “Rogai por nós”. “Vaso Honorífico, rogai por nós”.

Túlio Hora e sua esposa, perdidos, terminaram atolados na areia movediça da Bica; sua esposa, extremamente obesa, tinha lama até os joelhos, e por isso exclamou:
– Marido, tô atolada! – Túlio, concentrado na ladainha, respondeu:
– Rogai por nós.

Aturdido, como todos de casa, só dei por mim quando já estava na Itaperinha nos pertences de Santo da Jibóia, meu padrinho.

Do alto, podia-se contemplar o Lagarto ardendo em fogo. Era a Roma incendiada pelo gesto tresloucado de Nero.

Encostei-me no parapeito da janela e lastimei: – O que teria acontecido ao Cine Glória, à bodega de Seu Sérgio, sua cocada-puxa inigualável. Neste lamento, veio-me a imagem de Seu Lourenço do Mingau, do vatapá de Taviana, dos presépios de Olímpio Vieira e Zertina Araújo, a suculenta maniçoba de Ismênia, do puteiro de Mirena, as piabas de Zé Fubila e os dobrados de Tonho do Jegue.

O pior de tudo era o fim do reisado de Zé Pereira, ironizado pela voz da molecada: – “Seu Zé Pereira, seu reisado é de corno”. A resposta na língua: – “mais corno é quem vem apreciar”.

O incêndio varou a noite e foi perdendo sustança. Quando os bombeiros chegaram de Aracaju, a população já estava voltando à cidade. Para surpresa, o Lagarto estava intacto; tudo no seu lugar. Fatídico, somente o destino do velho telhado da fábrica, que ruiu carbonizado.

A cidade voltou à calma. Pelo meio da manhã já se ouvia o som da Radiofon tocando os melosos boleros de Anísio Silva e as canções de Nelson Gonçalves.

Ufa! Todos escaparam. O triste registro foi a despedida da saborosíssima laranjada “kalu”. Ainda a vejo na sua cor amarelada, sua tampinha verde que tanto valia nas trocas de fichas de refrigerantes. Entre a meninada, na sua inocência, servia de moeda.

Passado o tempo soube que Maninho de Zilá, fotógrafo de ofício, no afoito, tentou registrar o acontecido. Pena que as fotografias, ou não foram tiradas ou se perderam no tempo, tal a fábrica de bebidas Oriente. O Lagarto nunca teve outra igual.

5 comments

Anne Clay Prata Almeida

Doutor Joaquim, estou feliz e saudosa em poder ler este texto em lágrimas e risos. Minha avó Zezita já havia me contado deste episódio. Adoro ler sobre Lagarto e sempre que estou em minha linda terra, converso com vovô Marcelino sobre nossas origens. Que bom saber o quanto ama Lagarto, nós nos orgulhamos em tê-lo presente em nossa história.

Paulo Ferreira

Grande Joaquim (bons tempos da Sminorf),

Li com atenção redobrada a crônica, pois tal episódio se deu exatamente na minha chegada a Lagarto (terra que me viu nascer) depois de um decênio morando em Aracaju. Até parece que estou vendo a aflição da população que pouco ou nada podia fazer diante do atraso do “caminhão dos bombeiros” que, na pressa em chegar, perdeu-se no trevo de Salgado, atrasando mais ainda o socorro.

Vauberio Cézar

Compadre Joaquim, fiquei extasiado com “O INCENDIO” contado por você. Realmente verídicos os fatos acontecidos, visto que, eu morava bem pertinho, defronte à Padaria que ainda hoje existe, quando, anteriormente, era chamada Rua Dom Pedro II, hoje Calçadão.Você narra os fatos tão divertidamente, que acabei dando ótimas gargalhadas. Abraços, Vauberio

Maria Ornélia

Com muita satisfação, li seu artigo, gostei bastante e aguardo o próximo.
Abraços

Paulo Sérgio Oliveira Nunes

“Caro Joaquim,

Com grande alegria acompanho a divulgação das suas histórias e estórias, muitas das quais ouvi tantas vezes. Sinto que agora todos poderão compartilhar da sua inteligência, inventividade, humor constante, e conhecimento da história do nosso Lagarto. Brinde-nos sempre com o seu texto claro e divertido que nos orgulha a todos.

Aguardamos com ansiedade outros tantos.

Grande abraço

Paulo Sérgio”

Publicar comentário