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O juízo final

 

A

Paulo Sérgio Nunes,

Euler Ferreira,

Euclides Oliveira,

Antônio José,

Vaubério César e

Rose, em Frankfurt.

 

Explosão-da-Leste O juízo final

 

Naquela semana, a introversão parecia invadir as pessoas. Talvez uma premonição de que algo estaria para acontecer. O Mons. Marinho havia chamado a atenção dos seus paroquianos para aquele momento. Foram sete semanas de renúncia e abstinência. Até a própria matriz havia se despojado. Lá, nos altares, não se via uma ínfima pétala de flor, apenas o pano roxo cobrindo as imagens. Festa? Nem por sonho.

Monsenhor Marinho, nas suas homilias, explicava todo o sentido da quaresma. Não era exagero, portanto, o gesto de Dona Jiló em não permitir que Seu Florêncio a tocasse. Dizia que somente se prestaria a tais desfrutes depois do sábado de aleluia.

Naquela Sexta-feira Santa, ardia o sol. Na sacristia da igreja, Enoque Libório abria os gavetões do armário e, de lá, tirava os paramentos do Monsenhor. A estola, para aquela ocasião, teria cor especial. Por sua conta já colocara a imagem do Senhor Morto no seu ataúde. À tarde, ele seria carregado pelos ombros fortes de Mundinho do Leite, Juca Viana, Francisquinho Almeida e Chiquito Machado.

Ainda pela manhã, de porta em porta, os pedintes recebiam como esmolas, bolachões baratos e impregnados de amoníaco. Tinham um cheiro tão forte, que nos faziam verter lágrimas. Mesmo assim, era a forma dos abastados provarem o seu espírito de caridade.

Nas ruas do Lagarto, poucas almas vivas. Bares fechados, inclusive o de Nouzinho Galo. Até as suas bicicletas para aluguel, Merckswiss, jaziam inertes num canto do salão. Na Regência, mestre Bedóia ensaiava a marcha fúnebre.

Se na cidade pontificava o silencio, na Rua da Canafístula se agitava a casa de Constância, apinhada de gente do Tanque que vinha à cidade para pagar suas promessas, quando não, fazê-las.

Na procissão, Minervina de Sinhô Velho sairia com os pés descalços e uma pedra na cabeça. Constância, com a devida antecedência, já havia preparado a mortalha roxa e a coroa de espinhos confeccionada com talos de roseira, cultivada no seu quintal.

Mal falada por todos, Norminha do Serrão apenas acompanharia a procissão sem sapatos, culpava uma unha encravada e um calo seco. Seu marido, Onésimo das Miudezas, mascate renomado, não seguiria o exemplo da esposa. No seu avalio, tudo isso era armada da mulher. Ele que não trabalhasse para sustentá-la nos seus caprichos e no seu luxo. De certa forma já se achava cansado. Vivia mais pelo mundo do que em casa. Norminha, afoita e no verdor dos anos, para espantar a solidão, no seu tálamo deitava-se com um zambo da Leste, vindo das bandas do Maranhão.

Na igreja, tomavam-se as providências para a procissão. Dona Regina de Seu Rosalvo, juntamente com Maria José de Getúlio Hora, limpavam cuidadosamente os estandartes do Apostolado do Coração de Jesus. Maria Teles engomava o vestido branco e a fita azul de filha de Maria. As irmãs Ferreira, contritas, oravam incansavelmente. Na casa de Pedro Devoto, a exemplo da igreja, todos os santos estavam cobertos de roxo.

Mal passava das 14 horas, quando uma explosão ensurdecedora espalhou-se pelo Lagarto. Uma fumaça densa e escura cobriu o céu. Portas se abriram com o impacto. Vidraças se estraçalharam, enquanto fendas riscavam as paredes de muitas casas. Os vitrais da igreja não foram poupados. O mundo parecia ruir. Graciliano, ainda com a neurose da guerra, saiu gritando: “é os alemão…  é os alemão que tão voltando”. Das Virgens, sua irmã, há muito vária do juízo, trancafiada no quarto da frente, resmungou: “alemão de água doce, deu um peido e se cagou-se”.

Das Neves, que tecia redes, desmaiou com a explosão. À medida que recobrava a consciência, teve uma visão apocalíptica: viu a lua se partindo ao meio, o sol perdendo o brilho, a terra se abrindo em enormes fendas. Quando deu por si, já estava no consultório de Dr. Humberto.

Norminha, para não morrer em pecados, aos prantos, caiu de joelhos abraçando as pernas do marido, aproveitando-se do trágico momento para confessar o adultério. Para Onésimo, naquele instante, o perdão era o crédito para a sua salvação.

No Campo da Vila, pneus voaram a metros, caçambas viraram, crateras foram cavadas. Aos poucos, as notícias foram chegando. Não era o fim do mundo, mas o acampamento da Leste Brasileira, cujos tambores de dinamite haviam explodido.

Passado alguns momentos, tudo havia voltado ao normal. A procissão acabou às dezessete horas, quando começou o ritual do beijo à imagem.

Na igreja, concentravam-se nas bancadas da frente, as filhas de Maria. Os demais fiéis se acotovelavam nas bancadas da entrada. Com a censura e os olhares atravessados das beatas, o casal Norminha e Onésimo adentrou na igreja pela nave central, em direção ao altar de Santo Antônio. Percebendo o sentimento de reprovação, afiançou: “quem não tiver pecado, atire a primeira pedra”.

 

 

 

 

7 comments

ruselbarroso

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Cida Sales

Olá, adorei esta crônica, gostaria de saber se ela é baseada em fatos reais e se os personagens são, de fato, personalidades da época. Também gostaria de saber (se for uma história real) em que ano aconteceu isso, preciso dessas informações para algo em que estou trabalhando.

Desde já agradeço.

Paulo Nogueira Fontes

Essa pequena História me fez lembrar das procissões das Semana Santa no nosso Lagarto: a primeira, no Domingos de Ramos – a procissão do encontro com Senhor dos Passos e Nossa Senhora das Dores, a qual terminava com o encontro das duas imagens e o sermão; a segunda, a procissão dos homens na quinta-feira à noite; a terceira, a procissão do Senhor Morto, e a última, a procissão do Senhor Ressuscitado no domingo bem cedinho! Participei de várias delas com devoção! Saudades daqueles tempos e dos amigos que já se foram!

Antônio José Monteiro Rocha

Prezado Joaquim, sinto-me privilegiado pela dedicatória. Lembrei-me muito dos bolachões fofos, que, apesar do cheiro de amoníaco, eram de boa aceitação. Fiquei com pena da Norminha do Serrão. Precipitação dá nisso. Parabéns pelo texto. Abraços.

Vaubério César

Que narrativa! Gosto dos seus textos, pois além de verídicos, são muito engraçados. Parabéns e nos brinde sempre com bolachões cheios de amoníaco!

Anna Meire Correia

Como sempre, criativo e bem humorado. Adoro ler as suas crônicas e não resisto em deixar um comentário: você consegue formar um filme em nossa mente com detalhes muito precisos em seus relatos. Um grande abraço de sua ex-aluna e sempre sua amiga.

Paulo Sérgio Nunes

Joaquim, como sempre, seus escritos me fazem rir muito e me transportam para uma Lagarto que ainda sobrevive em nossas lembranças, graças a Deus. Cheguei a sentir o cheiro forte de amoníaco dos bolachões fofos – somente eles o possuíam, não é verdade? Obrigado pela dedicatória. Aguardo ansioso as próximas crônicas. Grande abraço.

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