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Os sócios

Para a empreitada se tornaram sócios. Se de um lado prevalecia a experiência, do outro a astúcia nas manicacas da Roleta. Somadas tais qualidades, uniram-se: Seu Menino da pipoca e Zé de Abílio.

Era natal, a banca de jogo tinha apenas uma roleta. Em vez de números, distintivos dos clubes de futebol: Flamengo, Vasco, Fluminense e daí por diante. Nas prateleiras, as prendas não passavam de latas de goiabada, de sardinha e minguadas carteiras de cigarro. Só para lembrar, cigarros sem filtro, já que tal requinte ainda não tinha chegado ao Lagarto. A banca de seu Menino ou de Zé de Abílio – aí fica a livre escolha – estava postada ao lado dos cavalinhos de Presídio, vizinho a barraca de João da Roda cuja especialidade era o pio agitado numa cumbuca de couro. A guisa de esclarecimento, João da Roda era investigador de polícia e, nas horas vagas, fazia suas incursões pelo mundo da contravenção.

O Natal esquentava na Praça Filomeno Hora. O clima de festa animava os bazares e as barracas de doces de Beata, Nininha e Maria de Teté. A ocasião por ser de fraternidade, não reclamava discriminação, por isso se misturavam negros, brancos, pobres, ricos, udenistas e pessedistas. Todos poderiam sugar, num grosso canudo, a gasosa de Tonho de Mirena ou degustar os amendoins com açúcar embalados em barquinhos multicoloridos. Logo ali, no palanque, a banda “Lira Popular” executava velhas valsas de Zequinha de Abreu. Sob a batuta de Chico de Zé Lourenço, tocava até a meia noite.

Os sócios não paravam. Um artifício foi criado para que a banca ganhasse três vezes mais do que o freguês. No vai-e-vem, bateu a fome. Seu Menino se comprometeu em ir primeiro. O jantar era ali mesmo na barraca de Ficiana fateira. Seu Menino, antes de sair, passou o rabicho do olho pela gaveta, ela estava cheia.

Saciado, voltou rápido à barraca. Ao abrir a gaveta, constatou que ela estava vazia, ali sobreviviam apenas algumas moedas e uma cédula de dois cruzeiros. O espanto deixou seu Menino empalidecido e os lábios trêmulos:

– Zé, cadê o dinheiro?

– Sumiu Seu Menino, chegou um homem do chapéu grande e quebrou a banca. Levou tudo!

– Por que não deu os brindes?

– Seu Menino, o homem só quis dinheiro.

Acabrunhou-se o velho sócio. Tomou o comando da banca. Sem ânimo, avaliou o prejuízo. Logo velhos fregueses foram chegando: Nêgo Uruba, Burrego, João Goela e o guarda Favorita, este último fardado e trazendo sobre os ombros um infindável número de divisas, deferência do prefeito sob a condição de não lhe aumentar os vencimentos. Sem muito tardar, a banca voltou a se fartar de dinheiro.

Conforme o combinado, Zé de Abílio logo saiu para o café, atravessou a praça e sumiu na porta da frente do casarão de Rubém. Mal sorveu o arroz com galinha, com o pé na frente e outro atrás, voltou à banca. Correu os olhos pela gaveta e no misto de agonia e desespero, falou:

– Seu Menino, pelo amor de Deus, cadê o dinheiro?

– Abílio, meu fio, uma desgraça! O homem do chapéu grande voltou, papou o dinheiro e levou as prendas.

O Natal ia minguando, apenas restavam alguns bêbados nas bodegas do Beco do Urubu e os sons dos boleros vindos dos puteiros do Feixe-de-Mola.

Sem dinheiro, sem prendas, a empresa faliu. Dissolveu-se a sociedade. Seu Menino, sem remorso, tomou o rumo de casa, lembrou-se da velha máxima: “Para o sabido, sabido e meio”.

No Natal seguinte, seu Menino tornou a vender suas incomparáveis pipocas e os deliciosos tabletes de doce de leite em caroço.

Zé de Abílio voltou ao seu bar, na rua D. Pedro II onde se lia na fachada “Bar Flamengo”. Ao fundo ouvia-se o ruído da velha roleta.

5 comments

Patricia Dantas

Senhor, meus cumprimentos, e desde já a minha admiração pelo seu trabalho. O seu estilo nos envolve de forma singular, a poesia dos acontecimentos, a originalidade e, principalmente, a fidelidade com as coisas do Lagarto. Parabéns! Quero um livro.

Marco Polo do Nascimento

Caro Dr. Joaquim,

adorei ler a crônica. Apesar de não ser lagartense, eu estava lá, na época, pois cheguei a Lagarto no ano de 1966. Lembro-me muito bem, pois também adorava jogar roleta e, como sempre, perder.

Abraços do amigo,
Marco Polo

José Augusto Viana

Vaubério tem toda razão. Joaquim está fazendo com que nós, que vivemos aqueles tempos, fiquemos vasculhando nossa memória, buscando pessoas e situações que preencheram e alegraram nossa infância. E é maravilhoso relembrar os bons tempos! Devemos isso a Joaquim, sem dúvida. Obrigado!

Vauberio Oliveira Cezar

Joaquim, achei sensacional o relato sobre o nosso personagem real, Seu Menino da Pipoca. Você, com sua imensa inteligência, soube retratar com maestria, um dos lados hilários e verdadeiros da nossa história. Parabéns, Joaquim! Continue contando fatos reais desse tipo.

Oswald Abreu

Meu caro Joaquim,
Parabenizo-o pela história contada. Que coincidência! Uma história semelhante fora contada em Simão Dias, povoado Feirinha da Rola. A cidade dos capa-bodes tem pelo colega Defensor Público apreço e estima, afinal, Vossa Excelência fora um dia Defensor Público em Simão Dias.
Sou um dos acessantes.

Saudações cordiais,
Oswald Abreu
http://www.capa-bode.blogspot.com
http://www.papa-jaca.blogspot.com

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