Amarronzar
Caminha pelo corredor alheia a tudo. Vestido desabotoado, frente a frente ao espelho, diz: “estou parecendo uma macaca” e lança o enigma: “o que é que faço?” O que é que eu faço com os anos que passam?
Mulher bela, branca, cabelos castanhos e lisos na altura do queixo, inteligente e voluntariosa. Esta é ela, mulher de várias faces, tímida e agressiva, artista e religiosa, Eva e Maria. Com o tempo, abandonou o seu ser lua e ficou perdida no espaço, não acha mais o que procura. Foi o vidro que se desintegrou, deformando a imagem antigamente avaliada como bela. Ela pensa que aquilo que vê é ela, desorienta-se, não sabe mais quem é. Procura a firmeza, não acha. Procura o frescor, não vê. E aí pergunta: “o que é que eu faço?”
Acho que ela quer dizer: o que é que eu faço com o que vejo? Não suportando a passagem, ela esgota-se com perguntas irrespondíveis e entra no túnel escuro da desesperança, trôpega, tateando a si mesma em busca de um rosto e de um corpo mortos, são cinzas que nem se podem tocar, pois o vento já levou. A senhora não percebe que é muito mais do que o espelho mostra?
“E o que faço com o que o vento leva?” Em sua cadeira de balanço entoa a pergunta que lhe consome a paz. Balançando-se, entra num transe e vê-se tocando o seu piano preto. Abre os olhos e está apresentando um jogral na igreja, depois visitando os idosos no asilo, no domingo à tarde.
Ela fazia valer suas vontades, de um jeito ou de outro. Detestava cozinhar, mas sua mãe resolveu fazer um rodízio. Cada dia era uma de suas três filhas que prepararia o almoço. No dia de ela ser a cozinheira, toda a comida era salgada de propósito, a fim de que ninguém quisesse mais que ela preparasse a refeição.
Nesta tarde de lembranças, recorda-se que seu gosto pela leitura não era bem aceito pela mãe, que preferia educar a filha para ser uma boa dona de casa. Então, aquela que nasceu além de seu tempo, escondia os livros debaixo do colchão para serem lidos longe de olhos fiscalizadores. Já casada, era também criticada por passar muito tempo distante da casa e dos filhos promovendo bailados beneficentes no Cine Ypiranga, estes em prol do Dispensário contra a lepra. As críticas lhe cortavam ao meio como se fosse menos mulher por ser diferente da maioria, por ter outros interesses além da maternidade. Com o tempo, ela acabou acreditando que tinha que caber na fôrma de mulher que lhe apresentaram e foi se podando, calando o som da sua música e da sua alma. Logo ela que era violino, nas formas e nas notas, deixou-se desafinar e perder o brilho. Trancou-se num espelho e os sabiás pararam de cantar. Por isso, pergunta tanto “o que é que eu faço?” Não deveria ter deixado sua arte, seus livros, seu bailado. A idade não é pretexto para se enterrar viva, há a possibilidade de ser texto, continuar a escrever, dedilhar, declamar poesia, ser você. Procurei agora o significado do seu nome e chorei, Carmem é canto e poesia, abandonados por você.
No dia a dia esquece onde pôs as chaves, na verdade acham que as roubaram. O remédio, os óculos e o arregaço são artigos que também estão no Procuram-se. O grande raptor de tudo é o tempo. Foi ele que azunhou o seu rosto, encardiu as folhas dos livros, declinou o pinheiro da praça. Lembre-se, porém, minha avó, que sua vida e suas memórias só existem por causa deste acerbo senhor. Quando olhamos uma mesa sob certa perspectiva, o tampo parece mais estreito do que é de fato, as pernas se mostram cada uma com um tamanho diferente. A senhora é como a mesa, vai além do que vemos. Os olhos são enganadores. “O que é que eu faço?” Veja além dos olhos, entre por eles, mas vá mais fundo, até encontrar as águas. Mergulhe e perceba que são azuladas, cor do infinito, como a senhora que vai muito além de uma bonita estampa. Aquiete os olhos, considere que o que eles vêem é passageiro.
Essa era uma conversa que deveria ter acontecido na vida real, cara a cara com ela, ou, pelo menos, naquela tarde psicodramática. No palco, sob a direção e o olhar carinhoso de Cybele (obrigada, Cybele), havia duas cadeiras que seriam ocupadas. Uma, por nós mesmas; na outra, sentaria, não em carne e osso, mas na fantasia, através de um ego auxiliar, a pessoa com quem tínhamos um relacionamento incompleto. Lá estávamos nós duas, e eu chorando a sua morte que nem havia acontecido ainda. Ô tarde chorosa. Eu não tinha nada a dizer. Diante da perda iminente dela, eu era uma imensidão de sofrimento e silêncio. Eu também perguntava “o que é que eu faço?” com o tempo que arrasta as pessoas embora. Assim sendo, não havia conversa possível, éramos duas questionadoras do vão existente entre a vida e a morte, não tínhamos nada a dizer que servisse de consolo uma à outra.
Hoje, diria que somos muito mais que folhas verdes, não somos apenas este instante de beleza, brilho e vigor. É preciso ultrapassar o verde, interessar-se pelo amarelo. “O que é que eu faço?” Suporte amarronzar, permita-se secar para cair. A vida se renovará.
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