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Fábrica de doença

Aos 3 anos de idade foi internada com febre alta. A mãe, Telma, apesar de muito jovem, a acompanhou durante todos os exames e período de internação com muito zelo, motivo pelo qual era admirada pelos familiares, sabedores de que nem toda mãe tem tempo e paciência para acompanhar os bons e maus momentos de seus filhos. Muitas crianças, hoje em dia, vivem sem o amparo físico e emocional dos pais. Esse não era o caso de Rebeca que tinha na mãe uma cuidadora incondicional.

Telma não desfrutava dessa admiração em sua própria casa. O marido era distraído para as coisas do coração. E como não tinha tempo para as pessoas, sua filha voltou-se toda para a mãe. Esta era não só o porto seguro nos dias doentios, mas também a ajuda nas tarefas escolares, a amiguinha que senta no tapete para brincar; as duas eram a família. Apesar disso,  o ar que se respirava era impregnado de terebintina, o que  fazia esse lar  tóxico, violáceo, em que doenças e mais doenças eram desenhadas nas paredes antes de irem parar no corpinho da menina.

Rebeca recuperou-se da indiagnosticada doença e teve alta. Não se passaram dois meses e a menina retornou ao hospital. Nos exames laboratoriais, verificou-se a presença de sangue nas fezes. A criança foi internada com febre de 40˚C. A mãe desvelava-se a fim de ajudar médicos e enfermeiras no restabelecimento da filha. Nenhum exame determinara um diagnóstico definitivo. A mãe sugeria pólipo na luz intestinal ou úlcera gástrica e insistia que deveriam ser feitos outros exames mais sofisticados. Apesar da opinião médica contrária, a insistência venceu. Ficaram mais de uma semana no hospital, novos exames e nada de diagnóstico. Alta.

Após três meses, fora internada mais uma vez, porém, em outro hospital. Uma  enfermeira desconfiou de que havia algo errado. Quando ela mesma punha o termômetro na menina, a temperatura era sempre normal, mas quando a mãe, a sós com a filha, media, sempre acusava febre. Então, responsabilizou colegas, a cada turno, a medirem, eles próprios, e com termômetros do hospital, a temperatura  da criança. Quando retornou no outro dia, apesar de nenhum evento de febre ter sido registrado no prontuário de Rebeca, a mãe mostrou o termômetro marcando 39,5˚C, dizendo que não dormira com a filha queimando em febre.

A enfermeira ficou aturdida, sua equipe não estaria mentindo, nem seria negligente se esquecendo da medição da temperatura, resolveu vigiar Telma. Os exames detectaram hematoquesia, sangue nas fezes. Os médicos suspeitavam que algo muito sério estava acontecendo com aquela menina, até a enfermeira relatar sua descoberta de que dois acontecimentos se sucediam ao longo dos  últimos dias: a mãe solicitava água fervente na cozinha, alegando a necessidade de um chá, minutos depois, a enfermaria era avisada de que Rebeca estava com febre. Contou também que flagrou Telma pondo um termômetro num copo com água quente, e, logo em seguida, sendo apresentado como prova de que a filha estava com febre.

Depois desses fatos, isolaram o sangue da amostra de fezes da criança e descobriram que o sangue não lhe pertencia, era sangue menstrual. A mãe estava menstruada naqueles dias, pois havia pedido absorventes à responsável pela limpeza do quarto.  Os elos estavam ligados, era a própria mãe que fabricava a doença da filha, mergulhando o termômetro n’água fervente e acrescentando sangue menstrual à coleta de fezes da menina, que, por conta do seu “estado de saúde” era ultrajada com dolorosas agulhadas de injeção e de soro.

Telma fora encaminhada ao setor de psicologia do hospital, mas ela não ansiava por reflexões nem por luzes que viessem clarear aquela situação pavorosa. Não apareceu mais. O hospital pôs a família a par dos acontecimentos e a cortina de doçura e zelo com que Telma se cobrira é arrancada, deixando à mostra só sonsidão e doença. Indignação e ódio eram os sentimentos de todos para com a outrora mãe zelosa. Como puderam enganar-se tanto? Como uma mãe pode utilizar a própria filha num jogo doentio desse?

Abandonada pelo marido, muda-se de cidade e afasta-se de seus familiares, afinal, eles não paravam de insistir num tratamento psicológico.  Ela some para ressuscitar em outro hospital, em busca de um novo tratamento para o problema da filha. Doença, dor, seringa e sangue faziam retreta o tempo todo na mente de Telma. Era essa a sua maneira de existir, vinculada ao mal estar. Tinha certeza que suas doenças infantis prorrogariam a saída de seu pai de casa, por isso, não se importava quando sua mãe urdia cada crise que a fazia parar num hospital.  A doença poderia emendar sua família rasgada, mas não emendou. Cegamente continua construindo doenças imaginárias na filha, assim como sua mãe lhe fazia.  Em seus raros momentos de reflexão, acha seu comportamento estranho, mas não sente culpa, afinal, aprendera que amar é cuidar e ser cuidada. Foram nesses momentos convalescentes que sentia como era amada por sua mãe.

Rebeca cresceu e suas peregrinações por clínicas e hospitais tornaram-na exímia nos procedimentos médicos e no jargão próprio a esse meio. Então, discutia com desenvoltura  o tratamento de seu abscesso no seio e se punha, com satisfação, diante de cada exame, por mais doloroso ou invasivo que fosse. Tinha uma satisfação mórbida em saber-se doente, já que ser cutucada por procedimentos médicos tornava seu corpo real.

Não, ela não poderia fazer isso com ela mesma. Eu não quero dizer que ela mesma criou esse tumor, aplicando uma seringa repleta de fezes no próprio seio. Não, ela não fabricaria abscessos. Mas com a carne repartida, sofrida, Rebeca sentia-se viva, ainda que com veias fuziladas. Estas clamam por picadas e invasões e se arriam sob pedaços de pele e músculo, já abatidos no chão de sangue negro e pisado, porque antigo. Nas paredes internas do seu seio o pus ganha forma, agiganta-se, afastando os tecidos bons. Que fiquem a ferida, a dor e o inchaço e que invadam todo o ser.

O tumor é ostentado na esperança de que ele supra suas carências. Doente, certamente, será amada por alguém. Suas memórias pueris atestam que sempre fora assim e que se deve enfrentar problemas de saúde impavidamente, porque, de uma maneira ou de outra, recompensas virão.

2 comments

Rose Santana

Parabéns! Muito bom.

Erenilda Custódio

Renata

Parabéns pelo texto abordando uma realidade muito difícil de se perceber.

Erenilda

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