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Ferrolho aberto

Vivia num quarto reforçado com grades, era o medo da nossa família diante de seus ataques de loucura. Num deles, rasgou os travesseiros, indo lã para todo lado, quebrou os espelhos da penteadeira e toda a comida que mamãe levava, ele tangia fora.

O problema começou aos dez anos quando, em virtude de uma infecção intestinal, teve uma febre tão alta que ele ficou igual a água fervente que se mexe toda, teve convulsão. A partir desse dia, Natan não foi mais o mesmo. Essas crises, com o estremecimento do corpo, cara entronchada e baba, tornaram-se rotineiras para o horror dele e da nossa família. A cidade inteira penalizou-se com o nosso sofrimento, mas ninguém tinha coragem de acudi-lo quando de suas quedas. Podia ser um mal contagioso. E o pior não era isso: enlouqueceu. A epilepsia abriu um ferrolho em seu cérebro, desgovernando os sentimentos de perseguição, confusão mental, delírios e agressividade.

Mesmo doente, gostava de trabalhar na farmácia com papai. Ajudava a fazer pílulas, a separar as porções. Um dia, teve uma crise lá, caiu por cima de dois vasos grandes de porcelana cheios de medicamento. Dias depois, deu fé da ausência dos vasos. “Fui eu, não foi? Quebrei aqueles vasos caros e nem tenho o dinheiro para comprar outros”. “Não meu filho, não foi você, não. E se fosse, não havia problema”. Ali, consumia-se de tristeza. Sentia que era um monte de roupa amassada, suja, sem utilidade.

Certa feita, ele foi achado por Sinhô de Zizuíno no meio do mato, lá pelas bandas da fazenda Mercador. “Natan, o que você está fazendo aqui?”. “Vou atrás de Dr. João para denunciar que papai me expulsou de casa”. “Deixe de besteira e vamos para casa porque seu pai já deve estar preocupado”. Como houve resistência, a precisão fez com que senhor o conduzisse até Simão Dias embaixo de uma espingarda. Quando chegou em casa, ainda ficou empacado na calçada. “Não entro de jeito nenhum. Eu fui expulso, como é que vou entrar?”.

Outro dia, ele sumiu de novo. Tanto que papai recomendou à mamãe que reparasse para que Natan não saísse. Ele havia tomado um purgante na véspera, Aguardente Alemão, muito bom para aliviar a cabeça e devia ficar de resguardo. Lá para as duas da tarde, papai enviou gente para procurá-lo no açude, no curral e nas beiras do Vaza-Barris. Não acharam. O dia escureceu e nada dele chegar. Nesse dia, caia uma trovoada, não só na terra, mas na mente de nossa família. Onde andava Natan? Já era noite quando fui procurá-lo mais uma vez no quintal. Encontrei o paletó dele pendurado perto do tanque e gritei: “Chega, chega!”. Com uma vara procuraram por todo o piso do tanque para encontrar o corpo. Nada. Então, um amigo de papai, chamado seu Bidu, se prontificou a mergulhar, para apalpar o chão do tanque, mesmo no escuro, mas não o encontrou. A casa já estava tomada de amigos, orações e de águas, vindas da chuva e dos choros. Depois de um tempo, decidi retornar ao quintal. Se o paletó estava lá, ele também devia estar. Quando abri a porta da sentina, lá estava ele, nu, todo molhado e tremendo de frio. “Menino, o que você está fazendo aí?”. “Deus mandou que eu andasse pelo telhado. Eu andei. Eu estava atrás de minha cura”. De fato, ele passou o dia e a parte da noite andando por cima da casa, em plena chuva. O juízo de Natan estava igual àquele telhado, todo remexido, mas a diferença é que sem possibilidade de concerto. Papai aplicou uma injeção forte para ele arriar, o movimento da casa se dissipou, mas nós permanecíamos com um alvoroço tão grande na alma. Ter um irmão desorientado desse jeito é de dar e desassossego. Será que esse mal é contagioso e vamos todos endoidar também? Porque estamos todos angustiados, amedrontados e já não temos paz.

Naquele telhado, ao som de trovões, estava a prova cabal de que não havia mais jeito para o meu irmão. A cada ataque epiléptico, era gotejado, junto com a baba, um pouco do seu juízo. Quando recobrava a consciência, via em suas crises um vexame público. Sentia muita vergonha de si mesmo, sentia-se, na verdade, uma lama suja e gorda, cheia de caramujos e minhocas. Mas, quando perdia o controle de si, o seu furor descabido e irracional era posto para fora. Todos nós vivíamos a navegar num rio sazonal, ora seco, ora navegável, convivendo com um Natan que ia de louco a carinhoso. Já não aguentávamos. Foi quando papai, ao procurar um renomado psiquiatra, resolveu, no dia 20 de maio de 1948, à custa de muito esforço, levar o nosso Natan para ser internado no “Psicopata”, nome dado, na época, ao hospital psiquiátrico. Nesse dia, nossa casa ficou envolta numa nuvem de dor e angústia. Envelhecemos em minutos o que o tempo levaria anos para estragar. Entre nossos olhos foram cavadas duas ruelas que subiam em direção à testa. Essa ruela só dava para um oitão em que estava escrito: Natan está internado num hospício. Um dos piores lugares da Terra, cuja rotina é composta de gritos, agressões, disparates, cheiros fétidos e aparências medonhas.

Só eu e meu outro irmão Jairo tínhamos coragem de visitá-lo. Ele não podia ficar no primeiro andar porque podia dar uma crise e levar uma queda nas escadas, então ficava no andar de baixo, justo na ala dos mais furiosos. Quando íamos visitá-lo, levávamos doces para os enfermeiros, mas Natan dizia que não era para dar nada porque eles lhe maltratavam. Perguntávamos se ele lia a Bíblia para o pessoal, ele respondia: “Que nada. Eu leio só para mim, aqui ninguém quer saber de Bíblia, não. São tudo uns hereges”.

Ele queria ser fumaça para fugir pelas beiradas do telhado daquele lugar que lhe fustigava até os ossos, já desmantelados e os músculos, já afrouxados. “Vieram me buscar?” era a pergunta que mais me doía ouvir, pois ele não tinha alta para sair, quando sabia disso, baixava a cabeça e não dizia mais nada. De sua fisionomia escorria uma tristeza que não era insana, era real e profunda e que escorria pelo chão e me pegava pelos tornozelos. Daí em diante, eu era pó, gosma e ginge. A tristeza dele virava uma assombração para mim. Quanta dó eu tinha dele! Meu Deus, quem dera que a sorte de Natan fosse restaurada!

Após alguns dias de sofrimento, motivado por uma forte infecção intestinal, faleceu no dia 31 de março de 1964. O sepultamento ocorreu no cemitério Santa Izabel em Aracaju. Foi a coisa mais triste que presenciei na vida, um enterro acompanhado por duas pessoas apenas, eu e Jairo. Dizer da nossa dor é impossível. Muitas décadas já se passaram e, ainda hoje, me questiono sobre aquele dia e o porquê de meu irmão não ter sido enterrado em sua terra, saindo o caixão de sua casa. Morreu por lá e por lá ficou.

Papai nunca superou o fato de ter internado o filho, acho que ele sentia-se fracassado porque cuidava de muitas pessoas doentes, ajudava mulheres no parto, mas não pôde dar um jeito na doença maldita que infernizou a sua própria casa. Deve ter sido por isso que nunca foi visitá-lo. Não suportava a aflição de olhar a loucura nos olhos do filho.

2 comments

Emerson Geo

Bom dia, adorei descobrir que em Lagarto existe algo bom para ler.

Paulo Nogueira Fontes

Cada família tem uma história triste para contar, mas geralmente por vergonha não as revelam. A condição humana possibilita situações as mais diversas, o que nos faz compreender o quanto somos frágeis, apesar de algumas vezes nos comportarmos de forma pretensiosa como nunca pudessem chegar até nós os infortúnios dos outros. Daí os nossos comportamentos egoístas. Afinal somos todos humanos e sujeitos à todas as formas de sofrimentos quer sejam pessoais ou familiares. O importante é que tenhamos a consciência de procurarmos ser solidários com os outros, pois, afinal, somos todos na essência, iguais. E na vida o que nos eleva são: a saúde, a fé em Deus e a amizade. O resto, nós conseguimos sempre.

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