Macabeu
À beira do precipício, despedia-se dessa vida fétida. Aspirava o ar, sabendo ser aquela sua respiração proparoxítona. Mantinha-se calado e quieto, certo do que faria dentro de poucos minutos. Era a manhã de uma segunda-feira, dia em que muitas decisões são tomadas, quando caminhou até um penhasco de onde via, lá em baixo, pedras afiadas, que lhe inquiriam sua coragem.
Enquanto se preparava para a última ação, repassou em sua mente a vida malograda que teve desde o início. Foi abandonado por sua mãe. De todas, essa era a sua maior angústia, não saber o motivo de ter sido rejeitado. Sua história era um queijo fedido e cheio de buracos desconhecidos. Quem era seu pai? Não sabia. Em que circunstâncias havia sido gerado? Não suspeitava. Quais os traços característicos de sua família biológica e onde moravam? Desconhecia. Assim viveu , sem saber de si e de sua história.
Quando criança, nos momentos de dor devido a uma doença ou queda, não costumava chorar. Não havia quem o socorresse, então, o tempo lhe ensinou duas coisas: que devia calar-se e que sua vida era um cisco, sem importância. A mãe de criação lhe tinha um desprezo tão cruel que não cansava de repetir: “Dê graças a Deus porque você ainda tem um teto para morar, porque, por sua mãe verdadeira, você estava era no relento, dentro de uma caixa de papelão”. Nessa hora, o sangue sumia de seu corpo, vertia pelo chão e, naquela poça rubra, via dilacerado o perfil da mãe que nunca lhe amou.
As mulheres deviam ser todas umas desgraçadas, iguais às mães que teve. Será que era por isso que, na adolescência, só se apaixonava-se por moças belas e comprometidas? Mandava cartas, flores, suspirando por um só minuto de atenção e sofria com sua feiúra sendo pisoteada e sem sequer um olhar. Os ossos se arqueavam , as espinhas saltavam como pipoca pela cara triste que tinha a certeza que nada em sua vida iria para a frente. É como se buscasse repetir na vida atual, através dos relacionamentos amorosos fracassados, o mesmo sentimento de inadequação e de abandono, parceiros seus desde sempre. O certo é que essa ideia de que nada valia o precipitou a buscar um precipício.
Ia morrer, estava tão decidido que resolveu matar-se de dois jeitos. Tomaria um comprimido de feijão, o que lhe causaria hemorragia interna, morreria fedorento para combinar com sua vida vomitada, e se jogaria do alto do morro para se espatifar lá embaixo, nas pedras, assim, morreria mais feio do que já era. Desta forma, se um dos métodos desse errado, haveria o outro para garantir o óbito. Amarrou bem o cadarço do tênis e, na sola, escreveu com caneta: “Vou ser feliz do outro lado”. Era a sua carta de depedida. Quando encontrassem seu corpo sem vida, saberiam que ali morreu um infeliz. Pegou o comprimido e ficou a pensar só mais um minuto no que acabara de escrever. Jogou a pílula suicida morro abaixo e decidiu atravessar a ponte que o levaria ao outro lado da cidade, tentaria a felicidade lá, com a condição de nunca mais procurar a mãe.
Com efeito, passadas algumas horas, avistou uma Macabéia desajeitada e desmilinguida, cabelos curtos, crespos e opacos, a reparar na tristeza da tarde que se despedia. Compartilharam a mesma aflição de viver. Porque não fizeram questão um do outro, por isso mesmo, passaram a se encontrar com frequência. No mesmo mês, foram morar juntos e o quase defunto recuperou o fôlego da vida.
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