Voinho
Era uma vez um lindo voinho, grandão e magrinho. Tão amoroso e presente na minha vida, tornou-se incrustrado na minha infância e na minha memória.
Vivíamos numa antiga casa de azulejos portugueses azuis e brancos, que ainda se encontra na esquina da praça principal. As palmeiras imperiais, que rodeavam a praça, eram o abrigo das cigarras que não me deixavam dormir à noite. Para completar a infeliz cantoria das minhas noites insones, havia os cachorros que latiam solitários uns uivos tristes. Eu não uivava, mas a noite expressava uma solidão tão desamparada, por isso eu odiava tanto os chiados das cigarras e ainda mais dos cachorros. Na verdade, o que eu não suportava era o meu estado de presenciar acordada o rasgar calado e melancólico da madrugada.
Nessa época, eu pensava muito e sofria por muito pensar. Pensava em muitas coisas, mas principalmente no sofrimento dos bichos e dos loucos. Quem dá de comer ao gato que mora na rua? Como ele dorme nas noites frias se não tem casa? Por que tanta gente louca no mundo? O que será que aconteceu para Bezita enlouquecer? Por que maltratam os bois pondo em seu lombo as iniciais do dono com um ferro em brasa? Não havia nenhuma resposta. Será também que alguém se importava com isso?
A menininha de cabelos dourados amava tanto o voinho e o voinho amava tanto a menininha. Ele era um porto seguro e sua presença um bem-querer, igualzinho àquela boneca ou paninho que não se quer largar porque traz proteção. Quando meus pais e eu nos mudamos para outra cidade ele arriou-se de cama. Uma parte dele parecia ter morrido.
Sábado era dia de feira e de ganhar boi de barro. Domingo era um dia quieto, calado, dia de ir à igreja. Às tardinhas, voinho me levava para passear na praça, essa que até hoje me recorda tanta coisa vivida: brincar de canto, de manja, de se esconder. Ali tinha um coreto, várias árvores em forma de casinha e uma fonte luminosa em que até já tomei banho. Tudo era um convite.
Sua presença me reconfortava diante dos vários doidos que rondavam nossa casa. A vizinha escandalosa que também colecionava bois de barro, maluca de doer, saia gritando praça afora. Havia um doidinho, quase nu, que ficava parado na esquina, com os olhos alucinados, só pulando. E o inteligente, que toda manhãzinha ia discursar sua retórica, aos gritos, na casa de minha vó.
Meu belo voinho foi-se embora sem se despedir de mim, sem dizer uma palavra, sem nenhum abraço… Quem o tomou de mim, assim, desse jeito? Quem teria essa coragem?
No dia do enterro, mandaram-me para a casa de uma tia. A morte foi escondida. Aquela ausência dolorosa, sem explicação, tornava os dias vazios, tristes, enganadores. Fatos ocorridos, porém ocultados da consciência de uma menina que tudo via, tudo sentia e tudo captava. Assim, a dor se multiplicou. A dor da perda, a dor do engano, a dor da saudade, a dor de um assunto proibido. Ai como eu queria falar do meu amor por meu avô, da falta que ele fazia, mas com quem eu iria conversar se não nominaram a morte? Este assunto não existia em palavras, mas por isso mesmo explodia e explode dentro de mim. Eu preciso gritar essa dor e esse escrito é um grito, grito duplo, da menina de 4 anos que passou por essa perda e desta que agora escreve e continua perdendo.
A morte foi calada, pensando-se que assim ela não seria acompanhada de sofrimento. Mas o sofrimento está aqui e agora, na infância que pula em mim e no louco desejo de segurar o tempo para que ele não me leve embora nem rasgue as minhas circunstâncias queridas.
À tardinha, minha casa era invadida pelo minotauro, aquele monstro horroroso do Sítio do Pica-pau Amarelo, o que me fazia sair correndo em disparada, pelo tablado de madeira antiga, rumo às longas pernas do meu voinho.
Agora, também corro até ele, para que me acuda na minha dor e me ajude a trazer à memória as minhas lembranças boas, e que eu deixe os momentos maus serem tragados pelos terríveis braços da morte, esta inditosa senhora que traz pavor a todas as gentes.
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*Psicóloga, professora universitária.
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