O rio da “minha” aldeia
Extraído do Jornal SergipeHoje – Ecos & Letras – Cultura
Assim como a Literatura Brasileira teria uma grande lacuna sem Sílvio Romero e Machado de Assis, a Literatura Portuguesa também não seria a mesma sem a visão de Camões e Fernando Pessoa.
O RIO DA MINHA ALDEIA é um texto poético indispensável àqueles que vêem na literatura uma das mais completas formas de expressão. Portanto, caro leitor, dê à sua alma a oportunidade de descobrir a riqueza dos escritos de Pessoa, a partir desse seu rio.
O RIO DA “MINHA” ALDEIA
Alberto Caeiro. In: Fernando Pessoa
Por Rusel Barroso*
Como os grandes textos poéticos dão asas à imaginação e permitem uma série de interpretações por parte do ledor, O RIO DA MINHA ALDEIA, de um dos maiores heterônimos de Fernando Pessoa, não poderia ser diferente.
Antes, porém, para se poder sentir a plenitude desse gênio da literatura, faz-se necessário dar conhecimento de um dos seus representantes – Alberto Caeiro – aqui dissimulado.
“E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem, mas como quem sente a Natureza, e mais nada”.
Alberto Caeiro da Silva nasceu em Lisboa, a 16 de abril de 1889, e morreu em 1915, na mesma cidade, tuberculoso. Órfão de pai e mãe, viveu com uma tia, no campo. Só teve instrução primária e, por isso mesmo, escrevia mal o português. Caeiro tinha uma larga visão de mundo. Poeta bucólico, vivia em contato com a natureza; daí sua lógica ser a mesma da ordem natural. Apresentava um “conceito direto das coisas”, um “objetivismo absoluto”, pois o mundo era aquilo que Caeiro sentia: “Os meus pensamentos são todos sensações”.
Outra característica fundamental de Caeiro era o seu paganismo. E quando Fernando Pessoa afirmava que Caeiro era o seu mestre, era apenas parte de uma verdade: Caeiro foi o mestre de Pessoa e de todos os outros heterônimos.
No texto desta tentativa de análise, intitulado O RIO DA MINHA ALDEIA, o autor nos conduz por um rio que faz navegar os pensamentos, e que ressalta um profundo sentimento de amor, guardado por aqueles que amam a sua terra natal.
Ao introduzir o segundo verso, a entreter a razão, ele transporta o leitor para os tempos de glória das grandes navegações lusitanas. Por meio de lembranças do passado, acende o ego saudosista da gente do seu Portugal, cujas naus continuam a embalar o seu mundo de sonhos. Nessa viagem, Caeiro apresenta o confronto inconsciente do rio da sua humilde e esquecida aldeia, ao Tejo, luzidio rio português cheio de recordações que não voltam mais. E, em contra-ponto, ele nos direciona para o presente – ao apontar os caminhos que o rio nos abre para o imigratório (saída voluntária do país) e para o cosmopolita (por pertencer a todas as nações, como um verdadeiro cidadão do mundo).
A forma sábia de fazer uso da repetição – nítida na palavra Tejo – ao contrário do que acontece em escritos comuns, confere ao texto a magnitude da sua sublimidade. As expressões se harmonizam de tal forma com a natureza, que esta parece palpável.
Ao retratar o cotidiano, as coisas concretas e a percepção do que está em sua volta, o escritor revela a sua condição de homem simples, mas de profundo sentimento – o que pode ser observado na linguagem e no emprego do vocabulário. É a revelação perfeita do poeta-filósofo que se harmoniza com a natureza, cujas sensações transcendem o real em busca do conhecimento. A força emotiva do poeta é tamanha, que nos faz imaginar que o pequeno rio de sua aldeia é maior e mais livre que o Tejo.
Na penúltima estrofe, quando o autor fala em “fortuna”, ele não se refere ao dinheiro, mas à sorte das pessoas que conquistaram a América. No entanto, para ele (e os demais portugueses), do lado de cá, existe um conforto – o rio que mantém viva as glórias de seu país.
Para demonstrar a satisfação e profundidade dos seus sentimentos, o escritor encerra o poema colocando sobre ele toda a sua objetividade: “Quem está ao pé dele está só ao pé dele”, ou seja, às margens do Tejo esquecem-se os fantasmas e os medos, só os sonhos se fazem presentes. Não importa se o rio é “grande” ou não, os sentimentos que ele transmite são bem maiores, e vão além da imaginação.
O texto, composto de seis estrofes, apresenta liberdade métrica e construção de versos livres, revelando assim, os traços do modernismo.
Por fim, o ponto máximo do poema se dá na singeleza das metáforas, que “deságuam” à nossa frente como se em busca da objetividade absoluta.
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* Professor universitário, escritor e pesquisador, membro da Associação Sergipana de Imprensa
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