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Trajetória de um povo renegado

Extraído do Jornal SergipeHoje – Ecos & Letras – Cultura

 

Aclamado pela crítica e lançado em nova edição pela Companhia das Letras, Os Desvalidos, de Francisco Dantas, escritor brasileiro premiado na Europa, revela a sina dos sertanejos que perambulam em meio à caatinga e carregam poucas expectativas em relação ao futuro. Neste livro, a condição de trabalho, a falta de instrução e a seca estorricante fazem do homem um mero sobrevivente, impotente diante da vontade de realizar seus sonhos e de guiar o seu próprio destino.

A intranqüilidade vaga por todo o romance na pessoa de Lampião – símbolo máximo do cangaço em nosso país. Trata-se de uma época em que o medo dos cangaceiros e da volante ronda os pensamentos de uma gente desafortunada e indefesa ante o poder destas duas forças. Felipe, Zerramo e Coriolano representam a face de um povo marcado pelos seus fracassos, medos e desesperanças.

A figura de Lampião se apresenta entre o bem e o mal – ora lembrado como justiceiro que tomava dinheiro dos mais ricos e soberbos, ora visto como bandido perverso e sanguinário. Capítulos inteiros são destinados a descrever a trajetória do rei do cangaço que narra suas próprias inquietudes e o seu zelo em relação à família, ao mesmo tempo em que aparece, mais adiante, com atitudes cruéis, a ponto de matar friamente, a punhaladas, Zerramo, compadre de Coriolano.

A personagem Coriolano faz menção à realidade de muitos dos infelizes que vagam pelo sertão em busca de sobrevivência. Sua vida se preenche de insucessos que o levam a altos e baixos, desde o mais fino trato como boticário, até a miséria como seleiro a vagar pelo mundo.

Além de fracasso, outra palavra que compete à descrição do nosso Coriolano é remorso. Ele fica ressentido pelo pai, cuja lembrança da morte, abandonado aos abutres, o atormentava e, também, pela separação e infelicidade de seu tio Felipe e da casta esposa Maria Melona, causadas pela calúnia do sobrinho inconseqüente ao ser influenciado pelos inimigos de seu tio.

O título do livro sintetiza o infortúnio, a pobreza e a apatia de seus personagens. Os desvalidos são aqueles marginalizados pela sociedade que os desdenha e se distancia de qualquer responsabilidade pela situação de penúria no Brasil. A forma enigmática da apresentação gráfica do livro, que chama a atenção no primeiro contato, revela o lado negro de uma região sofrida num país cercado de riquezas. Trata-se de um trabalho em que forma e conteúdo se casam muito bem.

Ao se falar dessa obra é imprescindível citar a presença marcante de um regionalismo impregnado de termos intrínsecos à região Nordeste. Os adjetivos e as expressões típicas dão verossimilhança às reações das personagens naquele mundo hostil, e às descrições do ambiente traçadas pelo narrador. A textualização é o aspecto primordial da obra, vez que a linguagem é o seu ponto máximo.

Os lugarejos de Aribé e de Rio-das-paridas são os cenários principais deste romance fascinante. No entanto, não podemos nos esquecer do pano de fundo que permeia toda a trama e determina o próprio destino das personagens: a caatinga.

O tempo histórico do romance corresponde mais especificamente à década de 30, quando o país atravessava uma profunda crise econômica e política que favorecia o crescimento do cangaço e de outros movimentos de revolta por todo o país. Quanto ao tempo da narrativa, há uma interligação de memórias passadas pelo velho Coriolano e sua presente realidade. O tempo às vezes é psicológico, às vezes cronológico.

A narrativa é tipicamente regional e ocorre com a penetração do pensamento da personagem em seu desenrolar. O narrador, dessa forma, se utiliza do discurso indireto livre, com um fluxo de consciência entre narrador e personagem, como se vê no trecho abaixo:

(…). Toda parição é perigosa, e nela se ajuntam as forças inimigas, no bom entender do parteiro Virgulino, calejado de penar pela mulher algumas vezes mais morta do que viva. No ano trespassado mesmo – é outra vez a memória puxando pelo coitado – Santinha achou de perder água e ter a dor de parir no coice de um tiroteio vermelho como o diabo! Dividido num repente entre o posto de chefe-de-guerra e a obrigação de marido-parteiro, esse Virgulino, embora por um só momento, desmareou-se apavorado… (p. 188).

Neste excerto foram destacados dois pensamentos: o de Lampião, grafado em itálico, e o do narrador, em grafia normal. Este narrador viaja pelo tempo e pelo espaço, enfocando as personagens, de maneira particular, em diversos momentos de suas trajetórias, mas tomando sempre como referência Coriolano.

Em suma, o trabalho desenvolvido pelo escritor Francisco Dantas vem mostrar a rudeza da vida no sertão nordestino, numa época em que os homens eram atormentados pelos fantasmas da fome, do cangaço e da ignorância, ao passo que lutavam para se manterem vivos à beira da loucura e da morte que os espreitavam.

Somente através de uma leitura cuidadosa é possível compreender a magnitude da obra Os Desvalidos, de Francisco José da Costa Dantas. Os elogios rasgados pela crítica endossam o valor irrefutável do conteúdo do seu texto, firmado pelo estilo envolvente da linguagem nele empregada.

Faço minhas as palavras de Antônio Medina, de O Estado de São Paulo, ao afirmar que “O vocabulário de Dantas, sem ser pedante, chega a ser prodigioso. Sua verbalidade mimetiza a poética do artesanato.

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