Amadou Hampâté Bâ: o guardião da memória africana e urgência de preservar a tradição oral
Série Julho das Pretas
Por Carlos Barbosa*
A cada dia, torna-se mais urgente voltar os olhos — e ouvidos — à vida e à obra de Amadou Hampâté Bâ, um dos maiores mestres da tradição oral africana. Escritor, etnólogo, historiador e diplomata malinês, Hampâté Bâ foi não apenas um defensor da cultura de seu povo, mas também um porta-voz da sabedoria ancestral africana, cada vez mais ameaçada pelo esquecimento.
Recentemente, ao revisitar artigos e fontes sobre o autor — como os publicados pelo portal BUALA, o Journal Le Soleil e o CdC, le média qui ressource, além de análises literárias em blogs e plataformas especializadas — retornei à leitura de sua obra autobiográfica “Amkoullel, o Menino Fula”, publicada no Brasil em 2003. O livro é o primeiro volume de suas memórias e apresenta ao leitor uma infância imersa nas tradições do povo fula, uma das etnias mais numerosas do continente africano.
Infelizmente, boa parte de sua produção literária permanece inacessível ao público brasileiro, por ainda não ter sido traduzida. É o caso de “Oui Mon Commandant”, segundo volume de suas memórias, onde o autor relata sua juventude como funcionário da administração colonial francesa, oferecendo um olhar crítico e sensível sobre o impacto da colonização e os primeiros anos de independência dos países africanos.
Um de seus pensamentos mais conhecidos — frequentemente citado como provérbio africano — tornou-se símbolo de sua missão de vida:
“Na África, cada velho que morre é uma biblioteca que se queima.”
Essa frase foi proferida por Hampâté Bâ em 1962, durante uma conferência da UNESCO, da qual participou como representante do Mali. Mais do que um lamento poético, a afirmação é resultado de mais de cinquenta anos de dedicação à salvaguarda dos conhecimentos ancestrais africanos, ameaçados pela imposição do modelo escolar europeu, especialmente o sistema francófono, no coração da África.
O compromisso com a preservação da memória oral nasceu cedo. Ainda criança, por volta dos cinco ou seis anos, Hampâté Bâ vivenciou a morte de seu avô, Patê Poullo — um pastor fula, sacerdote espiritual da tribo, mestre de iniciação e homem de saberes profundos sobre a natureza, a cura e os sinais da vida. Esse momento foi decisivo. Como ele relata em seu livro:
> “Foi lá que sua vida se apagou, ele se foi, levando consigo seus segredos e a maior parte de seus conhecimentos tradicionais. Chegou, no entanto, a ensinar alguns deles à minha mãe, que, como sua mãe, Anta N’Diobdi, era ‘rainha do leite’.” (p. 53)
A partir dessa perda, nasceu o desejo de preservar, registrar e divulgar os saberes tradicionais africanos, que até hoje resistem, mesmo diante do apagamento histórico e cultural imposto pelos processos coloniais.
A leitura de Amadou Hampâté Bâ não é apenas um exercício de admiração literária: é um gesto de reparação, memória e continuidade. Conhecê-lo é aproximar-se de uma África profunda, viva e pulsante — contada não a partir das lentes eurocêntricas, mas a partir da voz de quem pertence a ela.
*Carlos Barbosa é contador de histórias tradicionalista, pesquisador de culturas tradicionais e pedagogo, formado pela UNICESUMAR (Paraná, Brasil). Atua como narrador oral há mais de duas décadas, sendo integrante do Coletivo Ayó e do Coletivo “A Tradição Viva Amadou Hampâté Bá” que reúne contadores de histórias de diversos estados do Brasil. Como pesquisador do legado e obra de Hampâté Bá desde 2017, participa de diversas conferências, formações e eventos nacionais e internacionais com suas palestras e espetáculos, sendo considerado por Roukiatou Hampâté Bá (filha de Amadou) como o “Embaixador da Obra do Grande Patriarca no Brasil” pela Fundação Amadou Hampâté Bá (Abidjan, Costa do Marfim)