Tem nada, não!
Tenho um compadre, homem simples oriundo da zona rural – pequeno agricultor que por muitos anos plantou fumo até que a lavoura deixou de ser interessante sob o ponto de vista financeiro. ‘Dá muito trabalho e pouco dinheiro’, resmungou certa feita depois de fechar umas contas num velho caderno de páginas envelhecidas, num somar e diminuir que só ele, Estevão Mangabeira, conseguia entender: ‘o pouco que rende mal dá pra comer’, ficava resmungando pelos cantos, deixando transparecer um misto de preocupação e desalento. Mas, fazer o quê? Nascido no Tanque, na divisa entre Lagarto e Riachão do Dantas, Estevão é de família que sempre tirou o sustento trabalhando a terra – filho, neto e bisneto de agricultores. Seus ancestrais foram escravos de senhores de engenho em fazendas de canaviais encravadas nas terras férteis que margeiam o Rio Piauí, em Lagarto. Talvez por isso, ele ame tanto a lide rural. Como a maioria dos homens do campo, Estevão tem enorme prazer de sentir o cheiro da terra molhada por efeito da chuva, e do esterco concentrado no piso do pequeno curral colado a casa da propriedade de pouco mais de dezesseis tarefas na Itaperinha, um dos 118 povoados do seu amado Lagarto.
Nas décadas de setenta e oitenta, todos os anos, Estevão comparecia à agência do Banco do Brasil para levantar empréstimo destinado às lavouras de fumo e mandioca. “Fazia também uma pecuária para comprar duas a três cabecinhas de gado, até hoje gosto de ver os bichinhos no cercado, tirar o leite quando me acordo com as galinhas”. Chegou a ter umas vinte cabeças. Todas com nomes: “na hora que chamo, elas levantam a cabeça e vem comer a ração aqui na minha mão”. Não há como duvidar, mesmo porque nessa vida a gente acaba se acostumando com a maneira simples de quem vive no campo, desse povo que tem um jeito próprio de fazer as coisas. Daí, de tanto ouvir as falas do compadre, eu já não estranhava quando ele fazia referência aos diálogos que mantinha com as suas melhores vacas: Jeitosa, Mocinha, Rabuda, Mediana e Baronesa, ou com os bois Pachola, Sereno, Carretel, Lagarto e, o preferido de todos, Ferramenta – o melhor cruzador do sítio. Nunca me esqueço do jeito engraçado do impagável Estevão ao me contar – nos mínimos detalhes – a contenda sexual mantida entre o precioso Ferramenta e a não menos preciosa Rabuda. Ele precisou de espaço para narrar o causo que exigiu dele, o contador, alguns saltos e posições hilárias que me fizeram rir muito.
“Foi uma peste, meu compadre, a danada da Rabuda era toda metida, cheia de não me toques, de aí Jesus que ainda sou moça – mas não teve jeito – esperneou, deu coice e bufa na cara do bexiguento do Ferramenta que, justiça lhe faça, teve cautela e paciência até chegar o momento de cravar na coitadinha!
Foi cravando e a Rabuda se manifestando: huuuuummmmm!… huuummmm, até ficar parada, moída, com os quartos arreados! A bichinha era um gosto só – o senhor precisava ver.”
Diante do entusiasmo daquele autêntico homem do campo, eu perguntei: ‘meu compadre, tem coisa melhor do que essa vida que o senhor leva?
– Como assim?
– É, o verde do campo, cheiro de esterco e da terra molhada pela chuva, essas coisas que o senhor encontra ou faz lá na sua propriedade como plantar e colher, falar com o gado…
E ele, sem pestanejar: ‘tem, tem sim’.
Tirou o chapéu surrado, olhou para o céu e disse respeitosamente:
– Veloro!
– Velório?!
Sem dar importância para o meu espanto ele prosseguiu:
– Homi, um veloro tem seu lugar, é coisa boa, de muito respeito, é lá onde todo mundo se encontra de uma forma ou de outra. Campo santo ou sumitério, sete parmo ou encavetado, acaba sendo tudo a mesma coisa! Morreu, meu fio, só resta rezar para maquiar os pecados de quem se vai, de preferência segurando a mão de Deus!
– Mas meu compadre, velório? Isso é lá coisa que alguém possa gostar!
– Eu, gosto e pronto. Gosto de ver aquele povo triste, chorar junto a familiares, dar pêsames, ficar naquele ruge-ruge, do ai meu Deus, de elogiar o defunto dizendo que era uma pessoa tão boa!
– Ainda bem que não é todo o dia que morre alguém conhecido, né compadre?
– Aí é que o senhor se engana, Veloro? Velorista que se preza não perde um, não importa quem é o distinto. Boto meu paletó que fiz há uns vinte anos lá no Raimundinho Alfaiate e saio de casa com destino a casa do inditoso, pode ser na cidade ou no campo. Fico a noite inteira que Deus dá, rezo o terço e toda aquela ladainha triste feito a peste, mas não arredo pé do caixão.
– De jeito algum?
– Bem, como não sou de ferro, quando sai o cafezinho me afasto um pouco e tomo logo uns três. Em alguns veloros, é servido um docinho, uma quejadinha… tem as torradinhas saídas do forno, servidas com tigelas de requeijão amolecido e uma média no ponto. Confesso que é uma delícia.
– O senhor nunca perdeu um velório? – perguntei.
Passou a mão na boca e ficou por instantes com o olhar meio perdido, demonstrando contrariedade – algo que ficou muito visível.
– Já, sim. Perdi o maior de todos. Só de pensar fico revoltado.
Foi há uns dez anos. Quando aconteceu, eu estava em Salvador para tratamento da saúde. Passei uma semana fora. Mas, antes de viajar, pedi a um amigo fidumaégua velorista como eu para em caso de morte de alguém conhecido, não fazer cerimônia. Morreu, me avise – fui logo dizendo – não me deixe em falta e nem me faça a desfeita de me poupar da má noticia.
– E aí?
– Bem, sete dias depois, oi eu de volta, feliz pelos exames que fiz e pela certeza de que na minha cidade estava tudo na mais perfeita tranquilidade. Se ninguém ligou, é porque ninguém morreu e se ninguém morreu, eu não tinha perdido nenhum veloro. Desci do ônibus, e segui adiante carregando minha mala com patuás, fitinhas do Senhor do Bonfim e mais algumas lembrancinhas.
Quando faltava pouco para chegar em casa, quem me surge, quem me surge? O tal amigo velorista. Senti logo que tinha alguma coisa errada porque o miserável desandou a perguntar sobre a minha saúde, se tinha presente na mala pra ele, se na Bahia chovia e tal e coisa… Tentei estancar a conversa, mas o quê? O danado foi adiante, gastando o estoque até chegar no ponto!
– Que ponto, compadre?
– Ah, eu lhe digo:
O disgramado do velorista em certo momento me perguntou: homi, onde você se enfiou esse tempo todo? Passei a quarta-feira inteira, umas dez horas de relógio tentando localizar sua pessoa, perguntando a um e a outro sobre seu endereço lá na Bahia, mas nada.
– Me dê licença, mas localizar prá quê?
– Bem, quando o amigo esteve fora, morreu uma pessoa influente. Para ser sincero, mais do que influente… influentíssima!
– Não me diga uma peste dessa!
– É, morreu.
Meu compadre Estevão estava à beira de um derrame.
– Diga logo o nome, me tire dessa angústia, desse arfar no peito que tanto me incomoda.
O amigo velorista respirou fundo e soltou:
– A viúva Matilde, dona Matilde do Amor Divino!
– A poderosa?
– Sim, ela, a poderosa!
– Não! Não pode, dona Matilde morrer e eu lá na Bahia, cuidando de coisa menos importante!
E o amigo:
– Mas, Estevão, era a sua saúde!
– Que peste de saúde! Ficava para depois, dona Matilde era muito mais importante.
Desanimado, Estevão continuou a perguntar.
– Mas, me diga, e o enterro?
– Coisa de cinco mil pessoas.
– Vixe! Não é bom nem imaginar o veloro!
– Dessa parte, você não vai gostar de ouvir.
– Eu sei, mas conte, desgraça pouca é besteira, conte devagar, miudinho.
E o outro:
– Cheio, um entrar e sair de gente nunca visto nas redondezas, capelas penduradas na frente do casarão, flor que não acabava mais, tinha carro até da capital.
– Fale do serviço.
– De primeira, coisa de elite, nunca visto nem por você que já passou dos dois mil veloros.
– Não é possível, um defunto de peso aqui me esperando e eu lá na Bahia cuidando da saúde!
O amigo velorista sentiu que tinha chegado o momento de demonstrar prestígio.
– Pois é, amigo. Você lá e eu aqui, não perdi nada, me serviram muito bem. Foi cafezinho de primeira, pão quente com manteiga e requeijão à disposição numa mesa enoooorme, beiju molhado, saroio e pé-de-moleque vindos da fazenda da defunta, bolachinha de tapioca e outros quindins que o cristão aqui não sabe por ser coisa de granfino.
Àquela altura, o coração de Estevão estava a 180 por hora. Logo ele, boa boca e consumidor voraz do que se oferece em velório, tinha perdido a vastíssima boca livre. Abatidíssimo, num suspiro de desespero, perguntou baixinho:
– Serviram mais alguma coisa?
– Deixe ver. Hum… mingau de puba e caldinho de feijão para os que insistiram em varar a madrugada.
– Meu Deus! – exclamou Estevão perdido – um manjar desse e eu cuidando da peste de minha saúde!
O velorista testemunha ocular do acontecimento funesto estava tirando proveito da desgraça alheia, sabia que, com um pouco mais, Estevão perderia a razão. E foi o que aconteceu. Espalitou os dentes, deu rápida olhada nas unhas maltratadas, acendeu um cigarro e fulminou:
– Ah, ia me esquecendo. Também serviram um doce que você gosta muito.
– Doce de gerimum?
E o outro confirmando:
– Doce de gerimum!
– Misturado com coco, daquele que dói o dente?
– No ponto!
– Ah, não, não merecia um castigo desse. Eu, ali em Salvador, e ninguém teve a piedade de me telefonar, dar um jeito para que eu tomasse conhecimento de tão triste perda!
Estevão, vermelho como um camarão, arfando feito um condenado à beira do carrasco, suando sem parar, passou o lenço na boca, engoliu a saliva ao tempo que desviou o olhar do amigo em direção às outras pessoas que, àquela altura, acompanhavam o desenrolar da conversa. Em tom de comício bradou:
– Tem nada, não! É isso mesmo. Se Deus quiser, logo-logo vai morrer uma pessoa na minha família e eu não convido corno nenhum para o veloro!
Pegou na alça da mala e saiu a caminho de casa.
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