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As Meninas do Mestre Ferreira

Muitos se lembram do tempo em que a Igreja da Matriz de Lagarto vivia permanentemente aberta, aguardando, com suas bancadas de assento liso e bem cuidado, os fiéis penitentes compromissados com um rosário de orações que – entre sussurros – davam vida ao templo quieto e tranquilo com suas imagens distribuídas pelos três altares. Recordo-me, também, ainda meio criança e depois já adolescente, ter presenciado com meu olhar irrequieto e respeitoso, velhas figuras transitando vagarosamente dentro da igreja à procura do lugar mais comum, onde aninhavam às suas necessidades religiosas uma longa conversa vespertina com o Pai. Geralmente, no horário combinado desde o limiar de suas vidas, ao entardecer, quando o resto de luz emanada pelo sol patrocinava um colorido diferente ao bando de andorinhas – milhares delas – que, retornando do céu, faziam festa enquanto buscavam espaço nas árvores de bom tamanho em meio aos canteiros laterais da mais antiga edificação da querida Lagarto.

Lá dentro, três irmãs, velhas moças solteiras, rezavam o terço, compenetradas, cientes de que entre elas havia diálogo com Deus. De domingo a domingo, cumpriam o ritual duas vezes por dia, manhã e tarde. Durante anos seguidos, foi sempre a mesma rotina. Só quando caiam doentes eram convencidas a permanecer reclusas à espera do mal ser curado. Mesmo nessas ocasiões, elas rezavam juntas. No quarto onde as três dormiam, visível e bem cuidado, um pequeno oratório com imagem de Jesus amparado pelos braços de Sua Mãe, registrava um cenário comovente: Nenê, Saudalina e Carmelita – vestidas de branco e ostentando a fita vermelha de Filhas de Maria – ajoelhadas pediam saúde, cumpriam o que, para elas, seria a mais importante tarefa do dia. Das irmãs, a única que está viva é Carmelita. Aos 97 anos, ela revela poucos momentos de lucidez, principalmente nos assuntos que dizem respeito a atualidade. Mas, quando é provocada sobre o passado, fala com detalhes de vivências familiares marcantes, magníficas pelo conteúdo histórico e de sabedoria natural. Outro dia, ao visitá-la, fui ouvinte da narrativa de um encontro que ela testemunhou na década de vinte, bem ali, na porta de sua casa já centenária. Sentados, seu pai, Mestre Ferreira, e Etelvino Dantas, selaram uma parceria que se imortalizou.

João Ferreira do Espírito Santo, funcionário público, homem de feições distintas, tranquilas e bondosas. Além de seu ofício regular, também era músico. Sua mão direita transitava com singularidade pelas pautas dos cadernos em que ele desenhava as notas musicais que resultavam em partituras com belíssimos dobrados e marchas que, executados por Bandas de Músicas, conquistavam os aplausos de atentos ouvintes nas retretas que marcaram época ou, ainda, durante os festejos cívicos ou religiosos ao longo de praças e ruas do Lagarto. Era um mestre, ‘Mestre Ferreira’, fundador da Lira Popular do Lagarto. Em momento de rara inspiração, ele deu vida musical ao belíssimo poema escrito por Etelvino Dantas. Juntos passaram para a história com o hino dedicado a Nossa Senhora da Piedade.

Eu tinha uns seis anos de idade quando ouvi essa preciosidade pela primeira vez em um certo mês de setembro, durante os ritos noturnos do novenário em homenagem à padroeira de minha terra. Emocionado, diante de uma pergunta que lhe fiz, meu pai me colocou no colo e respondeu: “Esse hino bonito que a banda está tocando é de autoria do meu pai – seu avô João Ferreira.”

Os anos se passaram, mas sempre que ouço o hino, eu revelo a mesma emoção demonstrada pelo filho do Mestre Ferreira.

De vez em quando eu solfejo o hino e de olhos fechados me vejo na Praça da Piedade, a mesma que embalou os sonhos de minha adolescência e juventude. Da sacada de uma das janelas do Solar dos Carvalho, nitidamente percebo que a banda de música ainda desfila, seguindo os contornos de seu destino, deixando no ar um misto de alegria e emoção por conta dos acordes que executa, os mesmos que viajam por minha cabeça, deixando de coração apertado aquele povo que acompanha o cortejo com o andor onde resplandece a padroeira, altiva diante de sua igreja. Tento abrir os olhos para o retorno à realidade, mas não consigo ser preciso no domínio de uma ação que me tornou, por instantes, prisioneiro de uma fantasia que, de repente, me premiou com afagos de minha mãe e do velho, doce e amado pai – que já se foram para o sono dos justos, assim como minhas tias Nenê e Saudalina, e o Mestre Ferreira. Ele, mestre/maestro, com sua batuta regendo a banda, enquanto baixinho sopra nos meus ouvidos a letra do parceiro Etelvino Dantas…

Ó Virgem Mãe, ó Mãe da humanidade
Ó Padroeira desta terra tão querida
O teu olhar de ternura e castidade
Nos conforta nos embates desta vida…

2 comments

Patricia Dantas

Euler, mestre Euler, que bela crônica! Emocionante para mim, em especial, ao constatar a contribuição dos nossos avôs para a cultura de Lagarto. Como diz o Vauberio, lá em cima, nota 1000.

Vauberio Oliveira Cezar

Meu amigo Euler, você é soberbo e inacreditável. Tem uma memória incrível ao relatar o passado de 50 anos, aproximadamente. Parabéns e continue a nos dar leituras tão relevantes e agradáveis. Nota 1000.

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