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Drops Jornalísticos 2 – Quem é o dono de Lagarto?

Fiz minha estréia no vídeo da TV Sergipe em plena ditadura militar e às vésperas das eleições de 1978. Meu diretor de jornalismo, Theotônio Neto, me designou para cobrir duas cidades onde historicamente política partidária sempre motivou uma paixão exacerbada, deixando expostas as conseqüências de inimizades irreconciliáveis que acabavam afetando o eleitorado, resultando em discussões, ameaças, brigas e até tiroteios. Enfim, não era nada ameno o clima que nos aguardava em Lagarto e Itabaiana.

As eleições de 1978 foram realizadas sob o governo Ernesto Geisel e em nome de seu projeto de “abertura lenta, gradual e segura” o chefe da nação teve o cuidado de urdir um conjunto de regras capazes de assegurar a maioria situacionista no pleito legislativo de 15 de novembro, reunidas no Pacote de Abril baixado em 1977. Em linhas gerais o pacote manteve as eleições indiretas para governador de estado e para assegurar a maioria parlamentar da ARENA no Congresso Nacional criou o senador biônico e ampliou a bancada dos estados menos populosos na Câmara dos Deputados.

Chegamos a Lagarto no início da noite de uma sexta-feira. Primeiro, nosso carro de reportagem parou na Praça Filomeno Hora, tradicional reduto do eleitorado do antigo líder udenista Dionísio de Araujo Machado. Ele morava numa velha casa que despontava das demais não por ser a melhor ou maior da praça, mas justamente por ser o endereço daquele que despertava nos seus seguidores um respeito incomum, beirando a idolatria, principalmente em época em que estava em jogo o comando da Prefeitura do município.

Naquele momento, muitos de seus eleitores estavam postados na calçada da casa. Alguns, sentados no chão, outros, em pé, faziam uma parede humana a proteger a trincheira do chefe político. Quando alguém abria vaga na calçada literalmente ocupada, logo um novo aliado se oferecia para fechar o cerco. Aos nossos olhos deu para perceber que seria assim toda a noite e madrugada. Não encontramos qualquer dificuldade para colher informações ou fazer algumas entrevistas para a reportagem pautada. No entanto, eu e os dois colegas que me acompanhavam – cinegrafista e operador de VT – não tivemos acesso ao interior da residência de Dionísio Machado, embora a gente já tivesse a informação de que o ‘chefe’ estava lá dentro tomando algumas providências, despachando aliados escolhidos dedo para o exaustivo trabalho de vigilância a ser exercido em cada um dos 119 povoados do município. Uma missão que exigia olhos abertos e atentos sem direito a sono ou cochilo sob pena de ver o inimigo furando o bloqueio para cooptar o eleitor mais fraco – de posses ou de virtudes morais. Era um jogo de mão dupla: da mesma forma que protegiam o chamado reduto eleitoral do chefe, os ‘enviados especiais’ também atacavam o terreiro adversário sem dó ou piedade. A persuasão era aplicada conforme as circunstâncias. Às vezes, mesmo sem o conhecimento do chefe político desta ou daquela facção, o eleitor mais apaixonado tentava reverter o voto do eleitorado rural já comprometido com o outro chefe de partido, usando aquele velho estilo de ameaças veladas, de fazer isso e aquilo ‘caso o seu voto – tá me ouvindo?… Não seja para o candidato do nosso líder… tá me entendendo cidadão?’

Não foram poucas as vezes que os enviados dos líderes das duas facções entraram em confronto durante o cumprimento das tarefas encomendadas às vésperas das eleições. Alguns acabavam presos, outros, no dia seguinte, não se constrangiam em aparecer em público com dolorosos hematomas no rosto, oferecendo em contrapartida exagerados relatos do revide e do quanto eles tinham surrado os adversários.

Da Filomeno Hora seguimos para a Praça da Piedade. Lá, em grupos diferentes, tinha gente ocupando o espaço que compreendia a frente da Igreja Matriz até o palanque no meio da praça. Para surpresa nossa, Rosendo Ribeiro Filho – o Ribeirinho, que politicamente dividia o município ao meio com o adversário de Dionísio Machado – não estava recolhido ao interior de sua casa. A informação era que ele já tinha realizado a reunião de ‘despachos rurais’. Justamente por isso foi fácil o acesso ao chefe político que no momento de nossa abordagem comandava uma conversa animada da qual participavam alguns correligionários de primeira linha, entre eles Agenor Viana, José Vieira Filho, José Ribeiro de Souza e José Vicente Carvalho.

Enquanto eu conversava com Ribeirinho, uma sondagem sobre aquele momento político, meus outros dois colegas preparavam os equipamentos de gravação. O mais falante deles, Amaral – Gilberto Amaral Lopes Filho – figura excepcional, o melhor cinegrafista com que já trabalhei – sem saber exatamente quem era quem ali naquele grupo, resolveu fazer graça, um deboche por conta de seus já conhecidos e incontidos repentes.

– Sim, a conversa está boa, mas o que eu quero saber mesmo é quem o dono aqui da cidade!

Fiquei estático. Véspera de eleição, nervos à flor da pele, me vem Amaral com aquele quem é quem absurdo.

– Quem é o dono de que? – a pergunta veio de um Ribeirinho super vermelho de indignação. Fiquei preocupado ao notar que ele tinha dado dois passos à frente.

– É, o dono da cidade. Aqui deve ter um dono, não?– rebateu Amaral em meio a um sorriso que oscilava entre o cínico e irônico.

Aquela altura eu temia pelo insucesso da matéria e também pela integridade física do meu intrépido cinegrafista que começou a sentir na pele uma mudança de ‘clima’ na Praça.

Por outro lado, Ribeirinho ainda vermelho e com o dedo indicador balançando em direção ao nariz do colega, respondeu com extrema dureza:

– Aqui não tem donos. Aqui exercemos a democracia, é terra de um povo próspero, independente e livre, não me venha com desrespeito…

Senti a praça tremer.

Como uma desgraça estava a caminho, resolvi intervir dizendo com o melhor de meu sorriso amarelo que o colega estava brincando e que aquele era o jeito dele.

Foi o santo remédio. A minha estréia no vídeo da TV Sergipe acabou acontecendo conforme o previsto, na querida Lagarto, muito mais pelo meu repente conciliador.

No percurso da viagem para Itabaiana, próxima etapa do nosso trabalho, Amaral – que estava mudo há mais de uma hora – tinha recuperado a fala. Incorrigível, desandou a me perguntar repetidas vezes quem era, afinal, o dono de Lagarto.

Quase o odiei pelo seu exacerbado senso de humor.

1 comentário

Vauberio Oliveira Cezar

Amigo Euler,
voce é tão magistral em suas narrações,que às vezes eu me sinto transportado para a época dos acontecidos. Meus parabéns! Aliás, cumprimentá-lo é uma obrigação de todos nós lagartenses que primamos por histórias tão inteligentes. Abraços,

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