A prova da excelência
Não sei se foi no segundo ou no terceiro ano ginasial que o Laudelino Freire adquiriu um mimeógrafo. Lembro-me apenas, que o aparelho apresentado à época como novidade – não obstante ter sido patenteado por Thomas Edison, no ano de 1887, – chegava a Lagarto com um atraso de aproximados oitenta anos. Não era do tipo mais moderno. O modelo adquirido era acionado manualmente, quase como os primitivos e sem as inovações desenvolvidas durante décadas. Basicamente, funcionava da seguinte maneira: os textos destinados à reprodução eram escritos com a ajuda da velha máquina de datilografia e do papel estêncil, que servia de matriz. Ao ser perfurado, deixava que o álcool rompesse sua impermeabilidade diluindo a tinta contida numa das faces, permitindo assim a impressão no papel comum.
O Ginásio Laudelino Freire funcionava num prédio do governo do Estado de Sergipe, anexo ao Grupo Escolar Sílvio Romero. De instalações modestas, se valia mais da disciplina e da dedicação dos professores e funcionários como atributo maior para credenciá-lo como o melhor estabelecimento de ensino de Lagarto. A aquisição do mimeógrafo, obviamente, se apresentava como um avanço que acrescentaria mais agilidade ao processo educacional e acabaria de vez com a perda de tempo consumida pelos precários métodos didáticos adotados. A partir do seu funcionamento, ditar provas, textos, lições e outras coisas afins passariam a pertencer ao passado. Doravante, as tarefas de professores e alunos seriam facilitadas.
No entanto, nem todos recebiam com bons olhos a nova engenhoca. Havia quem a olhasse com reserva. Um dos mais céticos quanto à eficiência e segurança da máquina, para se render aos argumentos da maioria entusiasmada, impôs uma condição para utilizá-la: suas provas continuariam sendo sempre subjetivas. Os impressos trariam somente as questões formuladas e as respostas teriam que ser manuscritas no velho papel pautado.
Esse mesmo professor, apesar de ranzinza, até que não era um mau sujeito. Tinha muitas virtudes. Sempre procurava dar o melhor de si e acrescentar um quê de agradabilidade à enfadonha matéria que lecionava. No entanto, parecia sofrer de complexo de inferioridade, e confundia as coisas: vez ou outra tratava os estudantes com certa rispidez, para mostrar superioridade e se fazer respeitado. Quanto às notas, era famoso em deixar boa parte dos alunos pendurada na prova final, à beira da temida segunda época.
No final daquele ano letivo não seria diferente. Muitos alunos andavam preocupados em revisar a matéria ministrada no ano, com o intuito de conseguirem a nota necessária na última prova para garantir a aprovação. O ambiente de preocupação que grassava, repentinamente deu lugar a um clima de euforia quando um dos estudantes apareceu na sala de aula com uma bolinha de papel estêncil na mão. Fora jogado pela janela da secretaria, justamente quando passava pelo lado de fora. Caprichosamente, o artefato descartado caíra em sua cabeça. Ao abri-lo, descobriu tratar-se da matriz da temida prova.
Se por um lado havia a consciência de que a posse das questões tornava a prova para a turma numa tarefa de fácil execução, por outro, como contraponto, a responsabilidade de um pacto para manter o sigilo sobre o ocorrido também se fazia imperioso. Ao mesmo tempo era preciso encontrar um meio destinado a não gerar nenhuma desconfiança, pois uma unanimidade em acertos das questões não cairia bem.
A maioria, no entanto, não queria deixar por menos e não aceitava que fossem colocados pequenos erros como despiste. Desejava a nota máxima, como uma maneira de diminuir um pouco a soberba do professor, ou seja: o céu era o limite.
Ficou combinado que na data marcada todos levariam de casa a prova pronta, com todas as questões respondidas de forma correta. Na sala de aula, os alunos simulariam resolvê-las em outro papel, que posteriormente seria descartado e substituído. A estratégia para troca consistia em distrair o professor, simulando dúvida sobre um dos quesitos. Para isso foi escalado José Gustavo, aluno destacado em todas as matérias, que partiria da sua carteira em direção ao mestre, questionando-o. Nesse mesmo tempo, outros se levantariam, também fazendo perguntas, criando um pequeno tumulto, suficiente para que o intento fosse consumado. Minutos após, os estudantes entregariam as provas de uma só vez, proporcionando a Gustavo fazer a sua permuta.
No dia marcado, tudo ocorreu como o planejado. Porém, como a perfeição não existe e segredo é algo muito difícil de ser guardado, principalmente por muita gente, poucos dias antes apareceram tênues rumores sobre a matriz de estêncil. Contudo, ninguém deu a devida atenção. Ao fazer a correção, surpreendido com a excelência dos alunos, o assunto voltou à baila. O festival de notas máximas para todos fez recrudescer a suspeita de vazamento e com ela a possibilidade de anulação da prova.
Entretanto, mesmo com toda celeuma instalada não foi possível comprovar nada, pois a secretária, responsável pela impressão – e, por consequência, também pelo sigilo – jurava ter destruído a matriz, deixando no ar uma atmosfera de dúvida sobre a veracidade dos boatos. Ninguém sabia o que fazer. Os alunos pediam a manutenção do exame; a direção, a anulação.
O impasse persistiu até o dia marcado para entrega das notas, quando uma proposta conciliadora, vinda do próprio professor, abrandou os ânimos: seria feita outra prova, naquele mesmo dia, com as mesmas questões, porém com a ordem trocada. A exigência de ser feita à moda antiga também foi colocada; nada de impressão no mimeógrafo.
Sem ter alternativa, a turma concordou e se submeteu ao “novo exame”. Em seguida, após o término, foi feita de imediato a correção. Todos tiraram boas notas, porém sem o grau de excelência do teste anterior. Com certeza, os momentos de tensão fizeram com que muitos se esquecessem de um pouco do que haviam estudado. Mais do que natural.
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