Lucineide
Lucineide foi viajar, preferiu não ficar sob o perigo de se afogar. De qualquer jeito, afundou-se em pensamentos invisíveis, insustentáveis porque lhe falta a cumeeira. O desabamento da mente trouxe consigo a fúria esquecida ou talvez reprimida por tantos entes, por tantas mães. O eu abafado não consegue emergir e se manifestar livremente igual a paciente psiquiátrico dopado. Aquilo que foi socado vai ganhando força de explosão e já não se liberta saudavelmente, é auto-explosão com alto poder de destruição.
Lucineide é pesada, mas não no corpo. Alenta tanta preocupação que ficou assim, carregada. O problema é o café, o piso, o outro, enfim, a vida. Mas o fardo maior é carregar a si mesma, com tantos apêndices. Assemelha-se a um asno, ao qual ataram uma carroça cheia de tranqueiras, e que, por isso, tem o caminhar lento, cansado. Distante da leveza, seu semblante é sombrio, olhos sinistros e fundos emolduram um rosto onde só não há calma. Dá medo até de encarar e ver coisa pior por trás.
O andar dela é pesado. Seu desejo é de não dar passos, não agir, emudecer, minguar, desaparecer. O sofrimento pelo qual passa é visível. Seu desejo, justificadamente, é desaparecer. “Já que o sofrer não passa, que passe eu”. É uma situação parecida com o que disse o Prof. Udilson, um dia brincando: “Ainda não acertei morrer”. Lucineide quer sumir, mas não acerta como. A morte é uma pirracenta, ela não chega por si só para os que a desejam, seu gosto é contrariar. Então, se a pessoa quer morrer simplesmente a morte lhe nega esse gostinho. Nedhje também não tem coragem de tomar a iniciativa de abreviar sua vida.
A morte não vem, mas o seu cheiro está impregnado nela. E também o som da morte, com seus hinos fúnebres e arrastados. E seus olhos fundos e tristes. E suas mãos e pés retorcidos, nervosos. E sua não-ação. Tudo nela é morte. Uma morte ansiada, tida como a benquista finalizadora de uma trajetória riscada com letras inclinadas e odiadas.
Quando se olha para Lucineide tem-se a impressão de se estar olhando para um despenhadeiro. Dá medo, é risco iminente, não se pode encostar muito. A aparência sinistra dos traços faciais caídos e sofridos é terrível. Os olhos de quem vê perdem o brilho de alegria na hora, só em olhar; a alma sente um pavor só em estar perto. O contágio se torna inevitável com a pestilência se espalhando pelo ar. São partículas aterrorizadoras que sussurram com voz distorcida: eu vou lhe pegar também!
O ódio que sempre tivera por si mesma começa a se irradiar. Sua fala recheada de carrancas, xingamentos e disparates é uma agressão multifocal com tiros disparados para todos os lados. O sofrimento antes vivido e abafado, agora é leite fervendo em fogo acesso.
Assim a dor se alastra pela cidade na proporção da agonia de cada um. O pânico de um, passa a ser a angústia de todos os que pisam num chão que deveria ser duro e firme, mas é mole, encharcado de um lodo gasturento que encarde os dias. Nada mais se comemora, todos estão enlaçados nos fios viscosos e frios da tristeza. Dá vontade também de sumir.
Pão de angústia e água de aflição é o seu cardápio. Sua cama é adornada com pregos enfiados em ramas de urtiga e cansanção. O chão que ela pisa é de areia movediça e em sua profundidade há botijões defeituosos que liberam um gás e estão a ponto de explodir. Fósforos gigantes estão bem dispostos ao longo de todo o percurso sendo acessos por uma menina sinistra – não sei se viva ou morta, gente ou espírito – de uns oito anos, cabelos negros, roupa branca e que vive como uma assombração no telhado da casa, tendo como aliada uma coruja amarronzada gritando maus presságios. No jardim, somente flores negras a assistir a defunta viva, que, em delírios, crê que quatro cavalos arrojados puxam em direções opostas seus braços e pernas, a fim de esquartejá-la. A angústia maior e alegria também seria a desintegração de si mesma, através de uma união macabra e solene entre pregos, urtigas, botijões, fósforos, menina sinistra, areia movediça, flores negras e cavalos. Pronto, aí estaria o complô de todos contra ela. Para coroar tal expiação há tridentes vindos de toda parte apontados para ela como que gritando: culpada!
Meu desejo é que ela alcance a restauração da alma, morrendo nela tudo que é morte. Agora eu vou tomar banho para diluir, pelo menos, um pouco do horror que tenho deste viver de Lucineide.
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