Carregando agora

Uvas e mangas amargas

Ele era forte e bem apessoado. Foi assim que impressionou Rute, uma bela moça protestante. Seus grandes olhos azuis transmitiam o céu, sentido em sua alma. Rute vivia ora bordando, ora recostada à janela de sua casa espiando quem passava, coisa comum de gente do interior. Gostava muito de ir à igreja, pois nela tinha a clara sensação que refazia sua vida através da Palavra.

Todo sábado, José ia à feira e trazia as melhores frutas para presenteá-la. E assim passaram-se alguns meses ao sabor de uvas e mangas. Rute, cada vez mais apaixonada, deixou-se envolver pela doçura das frutas e dos beijos daquele galanteador. Logo se casaram e, rapidamente, retumbou o verdadeiro José.

Casa de interior é engraçada, tem a porta da rua e um ambiente com cadeiras para receber quem chega, depois mais uma porta que dá ao corredor e aos demais cômodos. “De hoje em diante”, disse José, no segundo dia de casados, “você é dessa segunda porta para trás, nada de ficar em janela, e acabou-se essa história de ir pra igreja, mulher minha não é pra ser rapariga de pastor”. Saiu ríspido em busca dos sapatos de salto que foram todos cortados a golpes de machadinha, a maquiagem foi jogada fora. Mulher casada não tinha precisão de andar emperiquitada. Resignada, Rute iniciou um longo aprendizado de tudo suportar, de tudo calar.

Mas, naquele dia nublado, a vida de Rute morreu um pouco, apagou-se o brilho dos seus grandes olhos azuis, que passaram a fitar uma paisagem enganosa, pintada com cores pálidas dissolvidas no primeiro pingo d’água. O amor tornou-se um quadro incolor, desagradável de se ver, impossível de se sentir.

Apesar da infelicidade no casamento, Rute não se tornou ressentida nem queixosa, acreditava que isso só traria mais dissabores para si e para quem a ouvisse. A imagem frondosa que ela tinha da vida não foi modificada pelas agressões sofridas. Sua bondade a fazia presentear quem a visitasse com aquilo que tinha, uma lembrancinha, uma fruta ou uma palavra. Decididamente, as uvas e mangas amargas provadas, apesar da longa indigestão e da podridão do vômito ter afetado tantos cômodos, não tiveram o poder de amargurar o seu recinto mais íntimo.

Engravidou do primeiro filho. Nesse ano, José foi a São Paulo fazer umas compras para sua oficina. Rute juntou um dinheirinho, bordando, e quando foi até a marinete se despedir de José, pediu: “Neguinho, aqui é pra trazer um berço pro nosso menino”. No fim do mês, ele estava de volta era com uma viola atrás das costas. Como as mangas e uvas enganaram! A aparência saudável externa escondia um câncer mortal que iria corroer quem delas um dia provou e também todos os seus descendentes.

Nasceu o segundo filho, que, por ocasião de um sarampo, chorava sem cessar. José, impaciente e querendo livrar-se daquele choro insuportável, joga o menino na porta do guarda-roupa. Quase Rute chorava a morte do filho, nesse dia, porque o menino ficou roxo e se tremia todo, de dor e de desconsolo.

A vida íntima do casal tinha uma nota só. Era como se fosse uma dança em que se baila sozinho, sem par. José, muito raparigueiro, procurava Rute altas horas da noite, apenas quando seus flertes pela rua não davam certo. Sem preparação e sem afago, subia em sua égua e galopava a passos violentos até se fartar. Este era um passeio egoísta e agressivo. Rute, dele não participava. Além disso, achava que isso devia ser coisa só de homem.

Os sete filhos foram criados à base de joelho no milho e muitas surras, principalmente nos dias em que a mãe dizia, “não chegue perto de seu pai que hoje ele amanheceu aluado”. Ela previa os acessos de ira porque José amanhecia o dia olhando para o tempo com o olhar vazio. Até a réstia do homem era ameaçadora.

José fora criado para o trabalho, então odiava pegar os filhos com livro na mão. Praguejava “esse menino é um postema, imprestável, não vai dar pra nada na vida”. Nesses momentos, Rute voltava para si e rememorava as palavras ditas em sua infância por sua tia que também era sua professora: “você só sabe chorar, não vai dar pra nada na vida”. Olhava para a situação em que vivia e ficava a pensar: como será que a tia adivinhou que ela seria uma desgraçada? Ou será que foram as malditas palavras que tiveram o poder de criar a desgraça? De uma forma ou de outra, os sofrimentos dos filhos eram o seu sofrimento. Ela via nos olhos dos meninos o reflexo do seu próprio olhar.

Diante de todos os problemas conjugais, Rute silenciava sustentando-se em seu versículo preferido, “a palavra branda desvia o furor, mas a palavra dura suscita a ira” (Pv. 15.1). Entretanto, não houve brandura que desviasse o ódio de José no dia em que pôs o filho mais velho para fora de casa. Tudo porque o rapaz gostava de estudar. Rute foi só sofrimento nesse dia. Um pesar que, desta vez, alcançou a fala e ela falou, implorou para o marido não fazer aquilo. “Se tiver achando ruim, vá você também”, foi a resposta. Rute ficou e o filho tomou o destino que o pai escolheu para ele.

Assim, Júlio tomou o rumo da estrada e pegou carona em um pau-de-arara com destino a Brasília. O caminho foi pouco para lembrar os horrores de sua infância. Perguntava-se de onde aquele homem tirava tanto ódio. Tinha vontade de um dia procurar os parentes para conhecer mais a sua história familiar, já sabia que um tio havia dado uma mordida na esposa agonizante e que outro morrera esquartejado. Mas devia ainda ter outras desgraças por trás daquele infeliz. As humilhações sofridas pela mãe, isso ele não podia aceitar. A vontade era de esganar o pai. Pensando assim, foi até bom ser expulso de casa. O vento que soprava em seu rosto tinha gosto de libertação daquela vida massacrada.

Chegando a Brasília, foi parar numa aldeia de índios e aí fora acolhido, morando um ano com eles. Para continuar estudando, ia para a biblioteca da UnB. Lá arranjou um trabalho de lavar pratos no refeitório. Prestou vestibular para medicina e passou em primeiro lugar. Nessa época, mudou-se para a casa de um primo, a convite deste. Apaixonado por livros, Júlio não teve como não envolver-se com literatura socialista. Época da ditadura militar, fora denunciado por seu próprio primo que era do Exército. Preso e torturado, via nos espancadores a cara de seu pai e toda a situação era um repetir de sua infância, com seu cálice (e cale-se) de sofrimento.

Desviando-se do furor, como aprendera em provérbios, Rute viveu com José ainda vinte anos, até ele querer expulsar o segundo filho de casa. O filho respondeu que não saia. Então ele saiu da vida de Rute, deixando-a com seis filhos nas costas. Os dedos da coitada chegaram a entortar de tanto ajeitar os tecidos a serem bordados no bastidor. Os dedos poderiam entortar, mas os filhos precisavam comer e era da máquina que ela tirava o sustento.

Nessa época, foi visitar uma amiga do outro lado da cidade e pegou um ônibus lotado. Havia gente por todo lado. Um homem excitado atrás dela e aquele roça-roça rijo levou Rute a um passeio que ela nunca experimentara. Sentiu aquele tremor percorrer todo o seu corpo e uma sensação lhe correu pelas pernas que a fez imaginar o que sentiria mais em cavalgar com cavalos pujantes em verdes pastos. Como pudera passar vinte anos, casada, e nunca ter ido à terra dos prazeres?

Logo que se separou, José foi morar com sua amante. Foi assim que ele deu fé do quanto era boa a sua Rute. Estranhou o fato de a nova mulher enfrentá-lo, reagindo aos maus tratos com uma enxurrada de palavras duras gritadas com rancor. Isso só fazia multiplicar a ira de José que era como cidade derrubada, que não tem muros (Pv. 25.28), então Cleide apanhava porque não ficava calada como Rute. Ela só dizia, “um dia você me paga”.

Esse dia chegou, quando, acamado com um câncer avançado, José passou a precisar dela para tudo. Agora ele ia provar todo o amargor que também plantou na vida daquela mulher. Sem dó nem piedade, ela deixava-o sem banho, sem alimentação nem medicamentos, seu desejo era expurgar cada gota de ódio reprimido em anos de maus-tratos. José se via atolado em seus próprios atos e fezes, incapaz de livrar-se do peso e do mau-cheiro que lhe envolvia. O ar da casa tornou-se igual ao de um cesto abarrotado de lixo antigo, nauseento.

Na vida, há pinceladas que, no início, são traços tortuosos difíceis de compreender, entretanto, o decantar das horas, meses e anos, imprime um novo olhar. Sabendo o que estava ocorrendo com José, Rute, com seu coração compassivo, disse aos filhos que podiam trazê-lo para a sua casa, que ela cuidaria dele. O filho que fora posto de casa pra fora disse: “Mãe, se ele voltar para casa, pode se esquecer que sou seu filho, não piso mais os pés aqui”. Então, o filho caçula resolveu contratar um enfermeiro para diariamente dar-lhe banho e administrar a medicação.

Era só o enfermeiro ir embora que Cleide puxava a agulha do soro e deixava o líquido escorrendo em cima do corpo esquálido de José, que só estava recebendo a ruindade que por toda a sua vida pingou na vida de todos. A vontade de Cleide era tratar as feridas dele com bicho de mosca. Estas que pelejassem com as feridas dele, engolindo-o vivo. Cleide, nem xite com tudo isso.

O tempo que passou acamado lhe serviu para quarar sua crueldade, como se o sol tombado de dor tirasse qualquer resquício de bondade e o fizesse ser ele mesmo, clareando, ainda mais, a sua agora calada ruindade.

5 comments

Gil Barbosa

Muito densa a sua narrativa. Estilo intenso e reparador que transborda em brilhantismo e labor próprio.

PLÍNIO SOARES

Muito bom mesmo.
Parece um romance de Machado de Assis, ou coisa do tipo.
Um livro com base nesse texto faria muito sucesso.
Parabéns!

Lindiana

Querida, que viagem!

Gostei do seu texto. Até lembrei-me de um professor do Polivalente, em Propriá, que comentava sobre a situação de muitas mulheres, que, assim como Rute, nunca tiveram nenhum prazer na vida.

Rute era uma serva, uma ovelha…
Cleide, o retrato de muitas bandidas, interesseiras.
José, como bem colocou o versículo, uma cidade destruída.

Com admiração,
Lindiana Paula

Titonia

Joia, Renata. Parabéns!

Jana

Caríssima, sua escrita é linda, inteligente, sensível. A narrativa, na minha modesta opinião, é de uma riqueza desdobrável. O feminino está bem retratado e entendo que a sexualidade poderia ser mais elástica por conta do seu inusitado descobrimento. Julius merece uma prosa à parte, não? Já espero um outro presente para todos nós, viu? Estou muito feliz, emocionada de ver seu trabalho fluindo, impresso, virtual para o mundo. Você merece isso tudo e muito mais.

Deus lhe abençõe. Força e Luz!

Jana

Publicar comentário