O milagre da jaca
Foi no antigo Instituto de Biologia da UFS que, numa referência à minha cidade natal, tive o privilégio de receber o apelido de “Lagarto”. Nominalmente identificado na minha origem, tornei-me alvo das brincadeiras comuns aos “papa-jacas”: “o povo de Lagarto escorrega na jaca e cai no fumo ou os meninos de Lagarto já nascem contraindo o indicador, prontos para tirar os bagos da jaca”. O fruto da terra era o preferido para as brincadeiras.
Gilberto Bezerra, o Ximena, estudante talentoso e destacado, boêmio nas horas de folga, amante da noite, apreciador da boa música e da cerveja, era contumaz em aprontar gozações com os colegas, e, como nenhum outro, sabia tirar partido de uma situação para exercitar o seu humor crítico.
Inteligente, culto, loquaz e de hábitos aristocráticos, com peculiar elegância, Gilvan Rocha lecionava fisiologia humana. Impressionava a todos a sua habilidade conquanto explicasse um assunto, simultaneamente, desenhava as partes do corpo correlatas. Era um artista nato. Não obstante todas as qualidades, contudo, quando lhe convinha, era implacavelmente irônico.
Numa aula, discorrendo sobre o funcionamento do sistema digestivo – a absorção e o metabolismo das gorduras, proteínas e carboidratos -, enveredou pela importância do equilíbrio dietético. Ilustrando as suas explicações, o mestre nos ofereceu uma tabela com a composição química e nutricional de alimentos, notadamente as frutas de clima tropical. Perspicaz, Ximena percebeu naquela tabela a oportunidade de me cutucar. Aparentando um ar solene, o interrompeu com uma pergunta maliciosa:
– Professor, qual a composição nutricional da jaca?
Gilvan respondeu com um “petardo” sob medida:
– Não tenho conhecimento se foi feita alguma análise da composição química da jaca. Aliás, pelo que sei, a jaca é uma fruta anti-social e muito indigesta, cujo consumo não combina com os padrões de civilidade. Talvez por isso não tenha sido analisada.
A risada foi geral. A fama de papa jaca do lagartense era conhecida. Entendendo ser uma provocação, prudentemente não me manifestei, evitando a armadilha. Reagi com naturalidade, embora considerasse a resposta preconceituosa.
Ignorando a etiqueta social e suas recomendações, há muito, o prezado colega se mostrava um apreciador inconteste da criticada fruta. Semanalmente, ia ao mercado central de Aracaju adquirir a iguaria (provavelmente, procedente de Lagarto), pois em casa sua presença era indispensável. Estava explicada a razão da sua curiosidade em conhecer o teor nutricional da fruta. Naquela aula, espertamente, omitira esse significante detalhe.
Anos mais tarde, discursando para uma plateia na sede do diretório do PMDB de Lagarto, já senador da república e candidato em campanha para o governo do Estado, Gilvan enaltecia as qualidades do nosso povo, da nossa terra e, surpreendentemente, até do sabor e valor nutritivo da jaca. Parecia que algo milagroso presente na fruta acabara de ser descoberto, especialmente, talvez, um poder milagroso para angariar votos. A convenção social que repudiava seu consumo, aparentemente, fazia parte de um passado, cuidadosamente esquecido.
Passada a eleição, como nenhum milagre aconteceu, o velho professor, provavelmente, reavaliou seus conceitos sobre convenções e etiquetas. Desta feita, quem sabe, para melhor.
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