A perícia final
O reconhecimento dos corpos carbonizados da Condessa Villeneuve e da Duquesa de D’Aleman, vítimas do incêndio do Bazar da Caridade, em Paris, no ano de 1897, foi o primeiro passo para destacar a importância do exame da arcada dentária na medicina forense, que teve a sua publicação oficial no ano seguinte, pelo dentista cubano, Oscar Amoedo, residente na mesma Paris.
Entretanto, somente em 1909, o novo método seria novamente usado, desta feita para a elucidação do incêndio criminoso do consulado alemão do Chile, graças ao trabalho do dentista Gérman Basterrica, que desfez a dúvida referente ao corpo queimado encontrado, que não era do seu paciente, e sim, de Ezequiel Tapias, porteiro do prédio, desencadeando então a caçada e prisão do secretário criminoso, que tentava escapar pela fronteira. Posteriormente, o termo “odontologia legal” foi criado e definitivamente incorporado à ciência pelo paulista Luiz Lustosa, intitulando a sua pioneira publicação.
Consciente da importância da especialidade, o novato cirurgião-dentista da cidade seguia, com rigor, os ensinamentos acadêmicos, guardando com cuidado a documentação pertinente aos tratamentos realizados, antevendo uma eventual necessidade. Porém, nunca havia atinado que tal precaução viesse a ser a ferramenta fundamental para por fim ao “embate poligâmico” entre um rico agricultor e suas quatro concubinas.
Àquela época, a expansão da cultura do maracujá, decorrente na exportação maciça do suco concentrado para os mercados europeu e americano, fazia a ascensão financeira de muitos sitiantes. A fartura de dinheiro motivara o mais próspero da nova safra de ricos a emigrar da zona rural para a cidade, e a trazer consigo o costume poligâmico (comum no povoado onde residia), não se importando com a afronta que viria a causar aos preceitos morais da época.
Na cidade, indiferente à censura das famílias mais conservadoras, os fofoqueiros de plantão se deleitavam com a novidade, creditando à aparência horripilante das mulheres, a razão pela qual viviam em harmonia sob o mesmo teto. Os mais maledicentes iam mais longe, através de outra explicação mais esquisita ainda: a de que o marido as selecionara após um rigoroso concurso de feiúra.
A vida na cidade, ao contrário da do campo, parecia ser pródiga para novas experiências amorosas, como também a virulência das más línguas. Insistentes rumores davam conta de que o garanhão estaria mudando de gosto e investindo em mais uma mulher mais nova e bonita. O falatório, a essa altura dos acontecimentos, já ecoava no lar das feiosas, ameaçando a convivência do concubinato.
Se não bastasse a apreensão provocada pelos boatos, a brusca obstinação por um visual mais jovial, com direito à pintura e alisamento do cabelo, tratamento estético-facial e de uma completa reabilitação oral feita pelo dentista, dava a pista de que algo a mais poderia estar acontecendo. Ressabiadas e temendo que a desleal concorrente desequilibrasse o “jogo” as mulheres deram um ultimato: naquela casa só havia espaço para quem fosse feia, e a pena pelo descumprimento do aviso seria a castração.
A negativa de tamanha calúnia, porém, amenizou a situação, embora a desconfiança permanecesse. Entretanto, mesmo ameaçado o agricultor prosseguiu na aventura. Querendo aparentar mais juventude ainda, desprezando o senso do ridículo, buscara novamente os serviços do mesmo doutor, desta feita para confecção de uma prótese especial, a ser ornamentada por dispositivos usados em aparelhos ortodônticos, a fim de lhe conferir a aparência de um garotão.
O dentista, discretamente, arrumou uma desculpa e se negou a fazê-la, afinal não fazia nenhum sentido levar adiante tamanha aberração, que só poderia comprometer o seu prestígio profissional. Entretanto, como o que não se consegue por aqui, consegue-se em outro lugar, o novo ornamento acabou sendo elaborado, bem ao seu gosto. Restava agora o cuidado de escondê-lo das suas mulheres e usá-lo somente nos encontros com o seu novo amor.
Tudo estava dando certo até quando, numa noitada, o agricultor esqueceu a “dentadura ortodôntica” na casa da sua amante. Esta, na manhã seguinte, ao encontrá-la no banheiro, precipitadamente, recorreu ao primeiro transeunte que passava à sua porta, contratando-o para levá-la de volta ao seu dono. O portador, um sujeito conhecido pelo apelido de Catete, afamado por trocar os pés pelas mãos, cometeu mais um terrível equívoco ao fazer a entrega do objeto, que acabou nas mãos da mais temperamental das concubinas.
Foi um tumulto sem precedentes. O agricultor, temendo ser castrado, jurava tratar-se de um engano, alegando que aquilo não lhe pertencia. As feiosas, entretanto, queriam mais do que desculpas e decidiram fazê-lo experimentar a dentadura. Era a oportunidade mais eficaz de averiguar a verdade. Argumentando que não poria em sua boca algo que já havia sido usado por outro, o homem tentou escapar ao cerco. Seguiu-se, então, uma terrível luta corporal.
Entretanto, mesmo em desvantagem numérica, a refrega não foi suficiente para fazê-lo abrir a boca e permitir a troca de dentaduras. No calor do embate, a “prótese especial” foi jogada para o alto indo parar no chão, sendo acidentalmente esmagada pelo calcanhar e pelo peso dos 110 quilos, da mais velha.
Sem ter como comprovar a infidelidade, a saída para o impasse ficou a cargo do dentista da família, que, como responsável pelo tratamento, teria muito que revelar. Imediatamente, tomaram o rumo do seu consultório.
Surpreendido com a incômoda situação e ao mesmo tempo penalizado com a aflição daquelas senhoras, o doutor, de posse da ficha do “acusado” e imbuído do espírito esclarecedor dos pioneiros franceses, do Dr. Oscar Amoedo, do Dr. Gérman Basterrica e do Dr. Luiz Lustosa, descreveu estritamente todos os procedimentos realizados, como se estivesse fazendo uma espécie de perícia final, decisiva para acalmar os ânimos. A partir daí, por razões éticas, não falou mais nada. A paz, definitivamente, foi restabelecida.
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