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Buraco de tatu

Só pode ser maldade ou gozação atribuir a um banho completo de imersão em óleo de rícino, por ocasião do nascimento, a capacidade que algumas pessoas têm em emanar antipatia. Tal justificativa não tem nenhum fundamento científico e não passa de mero folclore. Deve ser coisa inerente à própria natureza. Do mesmo modo que nascem pessoas de temperamento pernóstico, outras vêm ao mundo ungidas pela aura da simpatia. Se assim não fosse, o personagem deste texto não seria tão querido, embora carregasse uma dose pesada de pedantismo, um perfil bravateiro e um tempero extra de incorreção nos negócios.

O fato descrito neste texto começa numa época em que o Estado de Sergipe era aclamado como o reino do indubrasil e quando os melhores exemplares desses animais procediam da nossa Lagarto, cuja raça, de prestígio nacional, acabou enriquecendo muitos dos nossos pecuaristas. O dinheiro farto fazia com que o desfile dos “Galaxies”, o consumo do uísque White Horse, as reluzentes festas nas fazendas e as demais luxúrias peculiares aos novos ricos parecessem banais. O personagem central foi um desses fazendeiros bafejados pela sorte de pertencer à saga desse seleto grupo de criadores.

O súbito enriquecimento fez-lhe florescer duas manias, até então desconhecidas: a primeira, de exibir os seus dotes de conquistador inveterado, que não lhe permitia resistir à tentação de um rabo de saia (em que pese morrer de medo da mulher); a segunda, de cantarolar uma velha cantiga de Luiz Gonzaga, “Buraco de tatu”, como modo de exibir felicidade quando ganhava muito dinheiro nos negócios. A estrofe que mais gostava, dizia assim:

“Não bote a mão no buraco de tatu,
Que é muito perigoso, e é preciso ter cuidado
Lá dentro pode haver uma cascavel, ou surucucu
Esperando de bote armado…”

Diz o ditado que o uso do cachimbo sempre deixa a boca torta. Como na nossa terrinha o seu lado mulherengo nunca lhe trouxera embaraços, a crença no poder do dinheiro credenciou-o a aventuras mais ousadas. Pondo o orgulho acima da razão, decidiu enveredar por uma seara até então desconhecida, levando para fora do seu terreiro, em Vitória, no Espírito Santo, o seu espírito de conquistador irresistível. O alvo escolhido para a sua investida amorosa foi a mais bela mulher presente à exposição agropecuária daquela cidade, mais precisamente, a amante de um pecuarista local que, por coincidência, expunha animais em baias vizinhas às dele.

A beleza da moça o descontrolou de tal maneira, que o assédio se deu abertamente, sem o mínimo de cerimônia e sem os mais singulares princípios de discrição. Nem ao menos, tivera a preocupação de se inteirar do ciúme doentio que o sujeito nutria pela companheira, comparado apenas à natureza violenta do seu temperamento. O coronel Manoel Messias, de Frei Paulo, homem sensato e cauteloso, conhecedor da fama do capixaba (acostumado a andanças nas rodas da pistolagem das Alagoas e da Serra Negra, na Bahia), teve uma espécie de premonição, antevendo a enrascada em que o amigo estava prestes a se meter. Em vão, tentou dissuadi-lo a estancar a empreitada. A obsessão era tanta que ele só tinha os olhos voltados para a beleza da mulher. Queria-a de qualquer jeito, custasse o que custasse. Determinado a levar adiante o seu intento, desdenhou do alerta recebido.

Os rumores sobre o escandaloso assédio se fizeram ouvir pelo parque. A mulher, discreta, até que tentou esquivar-se, resistindo à investida. Entretanto, como o homem não desistia, perdeu a paciência e cientificou seu companheiro do que se passava. Atingido em sua honra e eivado de ódio mortal, este decidiu se vingar. Para isso, entabulou um diabólico plano, que consistia em assassinar o rival, no recinto onde se realizava a exposição. Queria que a lição de respeito, destinada a lavar a honra ultrajada, fosse presenciada por todos. O último dia do evento foi marcado para a execução da macabra sentença.

A notícia da trama, no entanto, vazou antes desta ser consumada, no dia do encerramento. Os sergipanos entraram em pânico e trataram de avisar ao amigo, que, alheio a tudo o que se passava, andava tranquilamente pelas dependências do parque. Ao tomar conhecimento do que lhe aguardava, se deu conta do tamanho do buraco de tatu em que metera a mão. Teve a certeza, então, de que nele não havia somente uma cascavel ou uma surucucu, mas um serpentário completo. Desesperado, refugiou-se no alojamento destinado aos motoristas encarregados de transportar o gado, enquanto aguardava que seus amigos encontrassem uma solução que lhe permitisse escapar com vida.

Mais uma vez, a experiência do coronel Manoel Messias se fez valer. A idéia de fazê-lo sair disfarçado de mulher foi exposta, sendo acatada pelos demais como a única solução viável. Sem ter alternativa, ele concordou. Coube a uma simpática cabeleireira a tarefa de preparar o disfarce, colocando-lhe uma peruca loira, um vestido bem rodado, sapatos de saltos altos e uma caprichada maquiagem. O trabalho ficou tão perfeito que o deixou tão “bonita” quanto à mulher cobiçada, embora tenha custado o valor de um belo exemplar de indubrasil, negociado dias antes.

Abraçado ao motorista e simulando um “affair” de muita paixão, ele deixou o parque num caminhão, sem despertar a atenção dos pistoleiros. Pela estrada, tomou o rumo da cidade de Itamaraju, no sul da Bahia, lugar programado pelos amigos para encontrá-lo, bem longe do perigo de Vitória.

A operação salvamento, casualmente, foi registrada pelas lentes de um fotógrafo que cobria o evento, cuja ”histórica” foto serviu de ilustração para uma extensa reportagem publicada na primeira página do principal jornal do Espírito Santo.

De volta a Lagarto, sem demonstrar nenhum constrangimento, comportou-se indiferente aos rumores acerca do vexame passado, mantendo a rotina dos negócios, gabolices e demais fanfarronices, sem perder a costumeira simpatia. No entanto, como que traumatizado, aboliu do seu repertório a cantiga de Luiz Gonzaga. A mania de conquistador, embora tenha sido preservada, ficou restrita ao seu terreiro.

2 comments

Lourdes Costa

Dr. Antônio, ri muito com este conto. Fiz uma viagem a Lagarto do tempo de minha infância, quando amigos e parentes meus de Aracaju iam passar férias e festas na terra de Nossa Senhora da Piedade. Apesar de hoje morar em Palmas (TO), não me esqueço das inúmeras histórias de minha terra. Por favor, não pare de escrever! Lagarto agradece e a sua história também.

Vauberio Oliveira Cezar

Dr. Antonio, sua narrativa, além de ser bem elaborada e principalmente divertida, aconteceu de fato nos meados dos anos 60, no parque de exposição. Está de parabéns pela ótima narrativa. Abraços, Vauberio

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