O burro e o zurro
Não existe ser humano perfeito. Nada mais natural. Todos nós temos defeitos e virtudes. No entanto, não é por acaso que pensadores e filósofos chamam de sábios os que são conscientes desses defeitos, e que se esforçam para superá-los. Mas o que dizer daqueles que tão somente enxergam em si virtudes? Dos que se amparam na artificialidade para suprir as qualidades que lhes faltam? Dos que gostam de aparecer a qualquer custo? Dos que não enxergam o quanto se expõem ao ridículo e dos que se deixam seduzir por futilidades? É muito difícil explicar. Não é tarefa fácil entender a complexidade da natureza humana.
Assim, era o veterano aluno da disciplina de Lógica. Adorava aparecer. Julgava-se o senhor da razão, acima do bem e do mal. Não que fosse demérito gostar de andar sempre bem vestido, de usar sapatos impecavelmente brilhantes, de empastar os cabelos com Wellaform ou chamar a atenção pelo uso exagerado do perfume Lancaster. O que causava asco era a sua empáfia, a maneira de tratar os colegas, o hábito de olhar e falar com as pessoas medindo-as de cima para baixo e, principalmente, a mania de se achar superior a tudo e a todos.
Quem o conhecia desde o tempo dos colégios Jackson de Figueiredo e Tobias Barreto não estranhava tal comportamento. Seu caráter sempre fora assim: bajulador, alcaguete e subserviente, notadamente perante aos que julgava importantes. Para levar vantagem não tinha o menor pudor. Era capaz de tudo. Diziam até que para entrar na universidade dera uma carpideira, chorando copiosamente aos pés do Reitor, conseguindo dessa maneira suplantar o revés sofrido no vestibular. Tamanho pedantismo só podia ser mesmo um escudo para esconder suas limitações.
Na faculdade, a mania de sapiência aumentou. Porém, diferentemente da vida colegial, lá, boçalidade e bajulação não foram suficientes para levá-lo ao êxito. Foi preciso muito mais. Bastou uma só disciplina exigir um pouco mais de raciocínio para fazê-lo amargar três reprovações consecutivas. Assimilar os conhecimentos de Lógica se mostrou bem mais difícil do que decorar frases em inglês, francês e latim, ou mesmo cortejar os abastados da cidade no programa dominical que apresentava todos os sábados numa emissora de rádio.
Por isso, a necessidade de aprovação em Lógica se transformou num incômodo tabu, difícil de ser quebrado. Se submeter-se a uma quarta tentativa numa mesma matéria já era ruim, quanto mais, por azar, encontrar matrícula disponível somente na turma reservada ao mais exigente dos professores. Era o prenúncio de que viria pela frente uma parada prá lá de indigesta. Não foi surpresa, portanto, que o desempenho estudantil continuasse no mesmo diapasão de mediocridade, com a consequente probabilidade de mais uma reprovação.
Para evitar a iminente derrocada, na última prova ele teria que obter uma nota excepcional, mas seria preciso que acontecesse um milagre. No afã de consegui-lo, apelou para o método que já havia dado certo antes e que julgava ser infalível: a bajulação. Para tanto, no sábado anterior à prova final, reservou todo o horário do programa de rádio para um convidado muito especial: o professor. A entrevista levada ao ar foi eivada de melosos elogios à eminente figura do mestre.
A confiança no sucesso da estratégia era tanta que antecipadamente dava a aprovação como fato consumado. Nem mesmo a probabilidade de reprovação e de ser ridicularizado foram suficientes para conter esnobismo perante os colegas. No entanto, não houve surpresa. O professor não sucumbiu à encenação e o castigo veio na figura de uma nota pífia. Ao receber a notícia, a impostura desabou. “E a entrevista, professor? Não valeu nada? O senhor deve explicações! A mim e aos meus ouvintes!”, gritou exasperado. “A entrevista foi uma coisa; a prova, outra”, rebateu o mestre. A sinceridade da resposta o deixou mais furioso ainda. Atordoado, deu uma rabanada e retirou-se da sala.
Tempos depois, a duras penas, concluiu o curso. O revés e a vergonha sofridos, no entanto, não serviram de lição. Nunca superou a mania de superioridade. Continuou sendo o presunçoso de sempre.
“O burro se encanta com o zurro” (provérbio armênio).
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