O susto
Tudo aconteceu numa época em que a cidade gozava de relativa tranquilidade, lá pelos anos oitenta. Lagarto ainda guardava costumes provincianos, tempo em que ainda era possível as pessoas se reunirem nas portas das casas, andarem tranquilamente pelas ruas, e podiam desfrutar de uma melhor convivência social. Uma boa turma, à noite, se encontrava costumeiramente na Praça Filomeno Hora, nas proximidades de uma banca de revistas que ficava em frente à Drogaria Mendes. Jorge de Nozinho, Arquibaldo de Zé Marcelino, Pereira da Energipe, Mineirinho, Hercílio da Radiofon, Dicinho Fraga, Dr. Carlinhos, Elcinho, Durvalzinho, Paulinho de Arão, Décio da Sapataria, e muitos outros ficávamos por lá até às oito da noite, quando saíamos para estender o “expediente” na churrascaria do amigo Pedro, na estação rodoviária.
Foi nesse mesmo tempo que veio para o nosso convívio um próspero sitiante, que fixara residência na cidade, procedente de um povoado próximo a Lagarto. Hábil negociante, tivera rápida ascensão financeira e econômica cultivando e comercializando maracujá e laranja. Era um sujeito alto, um pouco magro, pele bem branca (beirando quase ao albinismo), e muito boa praça. Embora guardasse muitos dos costumes da nossa zona rural, adquirira um pouco da vaidade do lagartense urbano. Gostava de andar bem vestido, usar botas de cano curto, fumar o cigarro do tipo slim, da marca Minister, e até arriscava no seu vocabulário algumas citações poéticas. Sua característica mais marcante era o vasto bigode que cultivava, o que lhe valeu o apelido de Baratão, em alusão a aparência que tal detalhe lhe conferia quando comparado à “tesoura” de uma barata d’água. Era, também, um sujeito muito supersticioso. Tinha verdadeiro pavor de assombração. Qualquer conversa acerca das coisas sobrenaturais era o bastante para lhe tirar a animação.
Certa vez nosso amigo Baratão achou de arranjar uma “namorada”, cujo marido, de temperamento aparentemente calmo, negociava com gado de corte e couros por algumas cidades de Sergipe e Alagoas. Era um sujeito, portanto, de viajar muito, passando vários dias e até semanas fora de casa. Segundo as más línguas, a imagem de mansidão servia somente para disfarçar sua face verdadeira. Muitos falavam que teria esbarrado em Lagarto após ter fugido do sertão da Paraíba, onde cometera um crime passional depois que soube que a sua mulher tinha um caso extraconjugal.
Esse namoro, obviamente, escondido, a princípio permaneceu cercado de cuidados. Quase ninguém sabia, exceto pouquíssimos dos seus convivas. Entre os poucos que tinham conhecimento estava Beto, com quem ele confidenciava segredos. Em face disso, Baratão, valendo-se da amizade, passou a tomar emprestado a velha casa de um sítio situado no povoado Alto da Boa Vista, que este herdara do seu pai, Dr. Evandro, transformando-a no local predileto para os seus encontros. Assim, nos dias em que combinava se encontrar com a moça, previamente, quase sempre no começo da noite, apanhava discretamente as chaves da casa no balcão da farmácia.
A velha casa do sítio se situava numa área descampada, rodeada por árvores e arbustos. Ao lado, a uma distância de mais ou menos dez metros, ficava outra casa, de tamanho menor, habitada pelo caseiro Germano, que morava sozinho. Este, entre as outras tarefas inerentes ao sítio, sempre às seis da tarde, cumpria religiosamente a incumbência de acender a lâmpada do poste de madeira que ficava em frente à casa do patrão, dando um pouco de iluminação e vida ao lugar. A chegada ao sítio se fazia por uma estreita estrada vicinal, uma espécie de corredor cercado pelos lados, que se comunicava com a rodovia Lagarto/Simão Dias. Era, sem dúvida, um lugar escondido, bem propício para as noitadas amorosas.
O tal namoro, que começou como algo despretensioso, foi paulatinamente ganhando um grau maior de intensidade. Os cuidados com o sigilo, a princípio rigorosos, pareciam estar sendo relaxados, pois, de uma hora para outra, rumores maldosos sobre o comportamento da mulher começam a ganhar corpo pela cidade. A possibilidade de que tais ruídos chegassem ao conhecimento do marido, portanto, se tornava cada vez mais real.
Embora não se pudesse afirmar que o homem já soubesse do caso, a mudança repentina do seu comportamento trouxe ao nosso meio a impressão de que alguma coisa havia no ar, pois, repentinamente, o sujeito passou a encurtar o tempo das viagens, ficando mais tempo em Lagarto. Para completar, a aludida mansidão desapareceu, sendo substituída por uma espécie de desequilíbrio, que lhe tirava o mínimo de constrangimento em dar publicidade dos seus atributos de valentia por onde quer que andasse, recordando sempre contendas passadas, cujo desfecho invariavelmente acabava em violência.
Os arroubos relatados, que mais pareciam um recado indireto ao Baratão do que qualquer outra coisa, fez com que a luz vermelha do perigo se acendesse no nosso meio. A dúvida se o homem já sabia ou não persistia; mas não a certeza de que nunca saberia. Alguma coisa teria que ser feita para que uma iminente tragédia não se consumasse. Por questão de sensatez, era mister Baratão pôr fim ao romance urgentemente. Entretanto, nenhum argumento, nem mesmo nenhum conselho foram capazes de convencê-lo. Ele teimava em não querer enxergar uma coisa que estava mais do que na vista.
Apesar de preocupados com o pior, resolvemos não mais abordar o assunto. Afinal, Baratão era maior e sabia muito bem o que estava fazendo. Beto também concordava conosco. Porém, seu espírito de bom gozador falou mais alto. Sem que ninguém percebesse, imaginou consigo a ideia de dar um grande susto no Baratão, tirando partido do temor que ele guardava em relação às coisas mal-assombradas.
O plano traçado incluía a participação direta de Germano, que previamente instruído, ficaria de prontidão aguardando o momento oportuno para agir, tão logo recebesse o aviso. Seria preciso, também, a colaboração de outros amigos, mas esse seria um detalhe a ser resolvido posteriormente.
Na primeira segunda-feira do mês de junho, lá pelas sete da noite, Baratão apareceu para apanhar as chaves. Tão logo o homem saiu, Beto prontamente fechou a farmácia e incumbiu Jaime Taxista, que fazia ponto em frente, a entregar um bilhete a Germano. Era a senha avisando que a hora chegara. Em seguida entrou em casa e saiu com uns embrulhos na mão. Naquele momento, somente quatro da nossa turma haviam chegado à Praça para a costumeira “reunião”. Beto os convocou a entrarem no carro e rumarem para o sítio. Só então, nesse momento, ficaram sabendo do que se tratava. Pelo caminho receberam instruções sobre a empreitada, e como procedê-la. Ficaram, obviamente, sabendo do conteúdo dos embrulhos, que se tratava de caixas de morteiros de artifícios, comprados na loja de fogos de Agnaldo.
Chegando ao sítio, o carro foi escondido nos fundos da casa, de modo a não ser visto por quem chegasse pela frente. Germano, devidamente paramentado, foi instruído a ficar num dos quartos da casa, só saindo para agir quando Baratão abrisse a porta e entrasse na sala. Os demais se esconderiam entre os arbustos, preparados para soltar os morteiros assim que o caseiro começasse a urrar.
Após uma rápida combinação, sob a fina chuva que caía, entre um misto de ansiedade e paciência, tomaram posição e esperaram o homem chegar. Não demorou muito. Assim que chegou, estacionou o carro bem em frente da casa. Baratão desceu do carro e passou um breve tempo olhando ao redor, como que a inspecionar o ambiente. Sentindo-se seguro, foi até a porta, girou a chave na fechadura e entrou na casa. A mulher ainda estava esperando no carro. Assim que chegou à sala e acendeu a lâmpada, deparou-se com uma figura estranha vestida numa capa colonial e com um chapéu preto de abas longas cobrindo o rosto saindo do quarto. A “coisa” urrava como um lobisomem ferido, ao tempo em que, freneticamente, agitava um engaço de coco. O “bicho”, então, partiu para cima de Baratão, dando-lhe várias estocadas. Enquanto isso, do lado de fora, a turma que esperava escondida iniciou o foguetório, direcionando os morteiros para o telhado da casa. Baratão, completamente apavorado, nem deu meia volta; saiu da casa andando para trás. Quando alcançou o alpendre, o foguetório se encontrava no auge. Parecia um tiroteio; uma emboscada sobrenatural. Em meio ao barulho ensurdecedor – sabe-se lá como – entrou no carro, deu a partida e saiu em disparada ziguezagueando pelo cercado do corredor.
A empreitada, apesar do pouco tempo de planejamento, fora bem executada. Ainda no sítio, entre sonoras gargalhadas, os protagonistas se comprometeram a guardar sigilo total. O resultado, do mesmo modo, pareceu exitoso. O namoro, acabou. O susto, providencial, valeu a pena.
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