Uma questão de honra
Seu Silveira tinha o pavio curto. Era do tipo que por qualquer bobagem mudava de humor e explodia com facilidade. Bastava ser contrariado ou sentir sua autoridade contestada. Não era pobre nem tampouco rico. Possuía bens, conquistados mediante trabalho árduo, tanto na propriedade situada nos arredores da cidade quanto no comércio de carne no mercado municipal de Lagarto. Era casado com D. Santinha, devotada dona de casa, cuja preocupação maior era cuidar dos filhos e do marido.
Viviam em uma época em que, praticamente, não havia energia elétrica. A conservação dos alimentos, especialmente os de origem animal, se dava através de métodos artesanais, como a salga e a subsequente desidratação da carne pela exposição ao sol ou ao calor das estufas dos fogões a lenha, quando não o prolongado cozimento junto com a gordura de toucinho nas panelas de barro nos preparo do lombo e da tradicional carne frita, ou através das linguiças caseiras, que eram curtidas ao sol, penduradas nos varais. A atividade econômica mais importante era a agricultura, pois Lagarto já possuía uma boa divisão fundiária, derivada da visão social do Mons. Daltro. Grande parte dos alimentos, consumidos pelo povo, provinha da roça, a exemplo do feijão; do café, que era torrado em casa; do milho, que processado em ralos de latão, dava o cuscuz –iguaria consumida diariamente no café da manhã e no jantar, servido com leite, ovos, manteiga e requeijão; da tradicional farinha, que era extraída da mandioca através de métodos rudimentares e armazenada em sacas ou baús junto a um pãozinho de Santo Antônio — segundo a crença assegurava a fartura. Também se cultivavam o aipim, a batata doce e a abóbora, bem como as folhas verdes e as poucas verduras. As frutas dependiam, exclusivamente, da sazonalidade. Peixes, uma raridade, só os de água doce, como a traíra, o jundiá e o caborje. Compravam-se poucos produtos. Basicamente o arroz, o açúcar, a carne verde, o jabá, o bacalhau, os pães e os bolachões, além dos parcos produtos de higiene pessoal. Eram tempos de muita pobreza, que talvez expliquem os hábitos simples das famílias e a consequente preocupação em conter desperdícios.
Certa vez, seu Silveira acordou desejoso de comer galinha ensopada no almoço. Naquele tempo, somente as famílias mais abastadas podiam se dar ao luxo de comer tal iguaria, mesmo assim só aos domingos ou em ocasiões especiais. D. Santinha, sempre zelosa, não gostava de desperdício; para ela, um pecado a ser punido pela Divina Providência. Até que tentou demover o marido da ideia, argumentando que podia muito bem reaproveitar as sobras do dia anterior. Mas não houve jeito. O homem continuou irredutível. Queria comer a galinha.
Apesar de nunca ter contestado as ordens do marido, nesse dia ela abriu um precedente: preparou uma fritada com os restos de uma panelada de carne frita. Embora consciente de que poderia desagradá-lo, nutria a esperança de contornar rapidamente a questão. Afinal, não tinha feito nada de desabonador. Inocentemente, nem de longe imaginava o transtorno que viria.
Chegando para o almoço, seu Silveira entrou apressadamente em casa. Dirigiu-se à bacia d’água que ficava no canto da sala pensado só na comida. No entanto, mal pode lavar as mãos e o rosto. Passando o rabo do olho pela mesa, percebeu somente a bandeja com a fritada, a farinha, o feijão e o arroz cozidos. “Cadê a galinha ensopada?”, berrou desconfiado. Quase teve um infarto ao saber que não comeria o prato desejado. Atordoado com a notícia, nem atentou para as explicações. Levou a desobediência da esposa como uma humilhação, uma afronta digna dos frouxos dominados pelas mulheres; um caso tão grave, que exigia reparação imediata da honra.
Pulando como um cavalo louco, espumando mais do que um cachorro azedo, puxou a fritada da mesa, levando-a até o chiqueiro, cuja porteira abriu com um violento pontapé, estremecendo toda a estrutura de madeira. Em seguida atirou-a aos porcos. O abalo foi tamanho, que alguns marimbondos que estavam acomodados numa casa no alto do telhado se assanharam e um deles pregou-lhe uma ferroada na orelha. O homem, que em estado sereno já tinha a pele avermelhada, com a mistura do calor do sol de verão, da raiva pela contrariedade e da pregada do marimbondo de fogo, transformou-se numa espécie de tição ambulante.
Prosseguindo o roteiro de insanidade, apanhou uma espingarda no quarto dos fundos e se dirigiu ao galinheiro, onde disparou nas aves todos os cartuchos que tinha. Foi uma cena de terror. As penas se espalharam para todos os lados, as aves assustadas, corriam, voavam, cacarejavam, enfim, faziam o possível para escapar do cerco. Ao final da empreitada, várias galinhas acabaram mortas.
De volta a casa, como castigo, mandou que D. Santinha preparasse imediatamente todas as galinhas abatidas. Acuada, desta feita, a mulher obedeceu. Sozinha, resignou-se a enfrentar a dura e demorada tarefa imposta.
Seu Silveira, no entanto, não demonstrava ter mais pressa em comer. No íntimo, já estava um pouco satisfeito com a vingança. Nem mesmo se preocupava em terminar o trabalho pendente na roça. Sentado à mesa, enquanto a mulher cozinhava, passava na orelha um unguento caseiro feito com ervas e sebo de carneiro capado derretido, muito recomendado para tratar contusões e picadas de insetos.
Com quase três horas de atraso o almoço ficou pronto. A panelada de galinha, apesar dos percalços do dia, fora preparada no capricho, bem ao gosto do “refinado” glutão. Orgulhoso do que tinha feito, seu Silveira desferiu o golpe final, sacramentando o castigo: obrigou a mulher a sentar-se à mesa para comerem juntos. Essa inusitada “gentileza” deixava clara a autoridade de quem efetivamente mandava na casa. D. Santinha, humilhada, comeu sem vontade. Seu Silveira, com ar de superioridade, comeu até se empanturrar. Das galinhas, só sobraram os ossos. A honra e a autoridade foram restauradas.
…
2 comments