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A anestesia e seus pioneiros

Há pouco mais de 160 anos, submeter-se a uma cirurgia significava agonia. Sem o conhecimento da anestesia, o ato cirúrgico estava mais para uma sessão de tortura do que para qualquer outra coisa. A destreza do cirurgião se confundia com a rapidez na execução das amputações, extirpações de pequenos tumores e, sabe-se lá como, remoção de cálculos biliares ou renais. A certeza do sofrimento –quase insuportável–fazia muita gente preferir o suicídio ao tratamento cirúrgico.

Nos meios acadêmicos, suprimir a dor era visto como uma utopia. A tentativa de controlá-la consistia na ingestão de álcool, na compressão de vasos sanguíneos ou no abaixamento da temperatura, logicamente sem dispensar a contenção dos pacientes.

Desde os tempos remotos, vários métodos foram usados no controle da dor: na China milenar, o uso da acupuntura garantia uma relativa eficiência; os assírios comprimiam a carótida, buscando-a pela parcial anóxia cerebral; na idade média tentava-se pela inalação da esponja soporífera embebida numa mistura de ervas, preconizada na fórmula de Alexandria; na América do Sul, os incas mastigavam a folha da coca para mitigá-la; há relatos, ainda, da tentativa de dissipá-la pelo uso do ópio, pela prática do ocultismo (hipnose?) e pela aplicação das teorias de Paracelso.

A perspectiva de transformação desse quadro sombrio começa com a descoberta e síntese de novas substâncias. Priestley descobre o óxido nitroso, em1772 (usado a princípio no tratamento da tuberculose). Humpry Davy, farmacêutico da cidade de Penzance, na Inglaterra, percebe que a inalação desse gás produzia euforia e uma vontade incontrolável de rir (daí a denominação “gás hilariante”). Experimenta-o em si próprio e consegue aliviar uma dor de dente. Percebe sua potencialidade, registra o achado, mas não é levado a sério.

Henry Hickman, cirurgião inglês, aplica-o em animais e é bem sucedido. Tenta fazê-lo em humanos, porém sua solicitação é rejeitada pela Academia Médica de Londres e posteriormente pela Academia de Paris (1828). Decepcionado e desiludido, morre dois anos depois.

Nos Estados Unidos, o uso do gás hilariante torna-se banal. É largamente aplicado em festas, parques, ruas e até em apresentações teatrais. Numa dessas apresentações, em Hartford, estado de Connnecticut (10 de dezembro de 1844), o dentista Horace Wells percebe que o caixeiro de uma loja, sob seu efeito, fere-se na perna e não esboça nenhum sinal de dor.

No dia seguinte, procura o responsável pelo “espetáculo”, Gardner Quincy Colton (um ex-estudante de medicina) e o leva ao seu consultório, juntamente com o colega John Riggs. Pede para lhe aplicar o gás e que o Dr. Riggs extraia um dente que o incomodava. Recobrando a consciência, relata não ter sentido nada durante o ato cirúrgico.

Repete a exitosa experiência em pacientes, mas sente que precisa aperfeiçoá-la, por isso, refuta a sugestão de registrar patente. Para esse mister, convida o Dr. William Morton, um dentista de quem fora sócio em Boston (estado de Massachusetts). Morton não se interessa, porém intervém e consegue com que Wells faça uma demonstração para o sisudo, mas renomado cirurgião, John Collins Warren, no Massachusetts General Hospital. A exibição da “sessão anestésica”, aparentemente, falha, provavelmente por um erro na administração (a cápsula de inalação foi retirada prematuramente) e o paciente, um estudante de medicina, solta gritos de dor durante a extração dentária.

Sob apupos e acusado de charlatanismo, Wells é expulso do recinto. Profundamente consternado, jamais se recupera desse trauma (mesmo depois do posterior desmentido do estudante).

De volta a Hartford, de forma frenética, retoma os estudos na busca da comprovação e aperfeiçoamento da sua descoberta. Experimenta, também, o éter e o clorofórmio, tanto em pacientes como, de forma indiscriminada, em si mesmo. Torna-se um dependente químico. Alquebrado, abandona a família e muda-se para Nova York passando a viver no submundo da promiscuidade. Envolve-se numa briga com uma prostituta. Fora de si, atira em sua roupa um poderoso corrosivo ferindo-a gravemente. Preso, sob efeito do clorofórmio, abre a artéria femoral com uma lâmina e morre na cela (1848).

Em 1841, em sessões caseiras do ether frolics (uso do éter como diversão), (em Jefferson, Estado da Geórgia), Crawford Williamson Long percebe suas propriedades de insensibilização e o usa em uma cirurgia. Registra esse feito e de mais oito outros em anotações pessoais, porém não relata à classe médica, talvez por não despertar para a sua importância ou por temer a condenação religiosa para tais experimentos. Pressionado por autoridades locais, abandona as pesquisas. Em 1878, esquecido, morre de paralisia.

William Morton, aconselhado pelo novo sócio, o químico Charles Thomas Jackson, passa a trabalhar com o éter nas suas cirurgias. Em 16 de outubro de 1846, no mesmo local onde seu colega fora execrado e perante o mesmo cirurgião John Warren, obtém êxito na apresentação do seu trabalho. Com auxílio de um inalador (idealizado por ele próprio), anestesia um paciente. O Dr. Warren retira um tumor do pescoço sem que o doente nada reclame. Terminada a operação, é efusivamente saudado pelo eminente cirurgião. Essa data marca o início da anestesia na prática cirúrgica.

Esse fato pressupõe, que o desinteresse de Morton em aceitar o convite do Dr. Wells para novos estudos, não fora tão sincero. Em parte, trazia um rastro de esperteza, pois munido da idéia do colega dera prosseguimento à pesquisa, trocando o gás pelo éter.

Bem sucedido, tenta tirar proveito pessoal. Mistura essências aromáticas ao éter e tenta patenteá-lo com o nome de “letheon”. Descoberto, tem o pedido negado. Embora com o seu plano fracassado, envolve-se numa disputa jurídica com Jackson pela prioridade da descoberta (e dos lucros, óbvio), acabando empobrecido. Em 15 de julho de 1868, vítima de um distúrbio psíquico, salta de um veículo em movimento caindo num um lago do Central Park de Nova Iorque. Socorrido e hospitalizado, morre no dia seguinte.

O Dr. Jackson, por ironia, após intensa luta contra Morton, enlouquece e é internado num hospital psiquiátrico, onde morre sete anos depois.

Três dias após o suicídio de Horace Wells, na pequena Hartford, sua família recebe uma correspondência procedente de Paris, da respeitada Sociedade Médica de Paris, assinada por Brewster, reconhecendo ser ele o descobridor da anestesia.

Colton, o fornecedor do gás a Wells, teve melhor sorte. Viveu até os 85 anos e ganhou muito dinheiro em seus espetáculos, contando sempre a história das extrações dentárias sem dor.

Em 1870, a Associação Médica Americana, no congresso de Washington, DC reconhece ser de Horace Wells a honra da descoberta e prática da anestesia.

O gás hilariante (óxido nitroso), atualmente, pode ser usado por cirurgiões-dentistas —devidamente habilitados–, em consultório (sedação consciente), mediante portaria do Conselho Federal de Odontologia (CFO-SEC- 032/2002).

“Divinum est opus cedare dolorem”.

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